O fim antes do fim
Era julho de 2020. Meu marido recebia o resultado dos exames que confirmavam o diagnóstico de Alzheimer do seu pai. Confirmar algo que já se tem por quase certo é uma tarefa dolorosa. A dúvida é, muitas vezes, um lugar confortável, onde apenas se espera. Mas a certeza impõe decisões.
Eu tinha acabado de saber do indeferimento de um pedido de bolsa para um pós-doutorado na Alemanha. Era início de pandemia e a universidade alemã para onde eu planejava ir estava fechada. O mundo estava fechado.
Meu marido e eu acreditamos durante muito tempo que não teríamos filhos. Em algum momento, começamos a hesitar. Naquele dia do diagnóstico, há quatro meses trancados dentro de casa, o futuro mais incerto do que nunca, eu disse: se for pra tentar ter um filho, a hora é agora; eu quero que dê tempo de conhecer o seu pai.
Ao me despedir do meu sogro, poucos dias antes de ele morrer na última segunda-feira, não do Alzheimer, mas de um câncer de pâncreas devastador, agradeci pela sua vida. Não apenas pela sua existência, pela criação do meu marido, pelo acolhimento em sua família. Mas por tudo que lhe aconteceu exatamente como aconteceu. Chico canta que a saudade é o revés de um parto e eu possivelmente não teria tido o meu em outras circunstâncias.
Aquele avô, que assim se tornou por tudo que a gente queria que tivesse sido diferente, sempre respondia que o objetivo da sua vida eram as suas netas, minha Beatriz, que nasceu em 2021, e a prima, Maria Luísa, que nasceu um ano depois. Ele talvez não guardasse uma única lembrança do que viveram juntos, não se lembrava das festas de aniversário que comemoramos, não localizava mais os espaços no tempo. Mas por nenhum segundo sua memória falhava ao falar das netas e ao reconhecer a felicidade que elas lhe traziam. A vida, apesar de tudo, ainda valia a pena.
Conforme a doença vai evoluindo, é difícil saber o que está no domínio do passado e se guardou, o que é recente e seu perdeu. Meu sogro Dalton nasceu em Passos/MG. Em seu último aniversário, comentávamos sobre o mais famoso passense, Selton Mello. Selva, sua mãe, era colega de colégio do meu sogro, “lembra dela, Dalton?”, minha sogra perguntou. “Eu me lembro”. E contou alguns detalhes daquela vida de 60 anos antes que lhe eram mais próximos que dos últimos 60 dias.
Na época em que minha filha nasceu, li sobre relatos de cuidadores de pacientes com Alzheimer. O mote do texto era quanto somos feitos de memórias. Enquanto acompanhava o declínio cognitivo do meu sogro, apesar de toda sua bagagem intelectual e uma vida de contação de histórias, eu me perguntava sobre as vivências que não se tornariam lembranças. Se existiam sentimentos ali, entre avô e neta, pai e filho, sogro e nora, eram aquelas experiências menos importantes apenas porque não estariam na memória dele?
Não eram. Elas também não estão na memória da minha filha, mas são parte de tudo que ela se tornou. Elas foram vividas, muito bem vividas, numa intensidade de presente em momentos diários, viagens e celebrações que talvez raramente aconteçam para quem ainda espera muito futuro pela frente.
As despedidas
Não é porque a gente fala de morte com naturalidade que ela não nos assusta. Não é porque aceitamos que somos finitos que não sofremos, que não chamamos a morte de feia.
Recentemente, um colega do meu pai enviou uma mensagem a algumas pessoas. Ele dizia que tinha sido diagnosticado com um câncer de fígado em estágio avançado e se despedia. Agradecia pelos momentos felizes de convivência. Morreu duas semanas depois.
Tive que me acostumar às despedidas cedo. Eu tinha 13 anos na primeira mudança de cidade e estado. Talvez nunca mais eu veja aqueles que me deixaram bilhetes carinhosos em cadernos que tenho até hoje. De alguma forma, saber disso não me entristece. Mas ler a mensagem do colega do meu pai, que vi poucas vezes, trouxe uma tristeza ainda maior do que a da sua morte.
Sou uma defensora intransigente da honestidade. Do direito à informação, da autonomia para a tomada de decisões. Das chances de despedida. Mas também sou uma defensora da tristeza. Ou talvez só consiga ser uma coisa, porque sou a outra também. É natural que a morte faça parte da vida, tanto quanto é natural sentir tristeza ao ver o outro partir, ao perceber a proximidade do nosso fim, do fim da convivência com as nossas pessoas amadas. A ausência definitiva é inegociavelmente triste.
Quando visitei um hospice na Alemanha, em 2016, o que mais me impressionou foi que as pessoas dedicaram seu tempo a conversar comigo, mesmo sabendo que aquele tempo estava acabando. No fim daquele dia, eu me senti encarando o absurdo. A morte é absurda. Tanto quanto é natural, quanto é necessária para que a vida seja exatamente como é, com seu tempo limitado, ela é absurda.
Saber que meu sogro estava vivendo suas últimas semanas foi muito difícil.
Antecipamos sua festa de aniversário. Recebemos seus irmãos que moram em outras cidades. Chamamos uma médica e uma enfermeira paliativistas. Alugamos uma cama hospitalar.
Para que ele pudesse ter o maior conforto possível até o fim, optamos pelo hospice nos últimos dias. O que eu tenho estudado há mais de dez anos se tornava uma experiência pessoal:
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Saber o que fazer torna as coisas menos difíceis, mas não menos tristes. Vai doer o que tiver que doer.
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A sensação de que se fez o que tinha que ser feito ajuda a processar o luto. A decisão pelos Cuidados Paliativos exclusivos e pelo hospice deram a chance de viver os últimos dias sem intervenções fúteis, sem restrição de visitas, com pudim e sorvete. Meu sogro teve uma sorte proporcional à bondade que praticou em vida, é verdade. Quase não reportou dor ou dispneia. Mas, se tivesse sido diferente, as medidas de conforto teriam sido ainda mais necessárias.
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Nosso controle sobre as coisas e o tempo das pessoas é muito limitado.
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Morrer é caro. Funeral pode ser muito caro.
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Se for importante para a família, é bom encontrar quem faça a extrema-unção (unção dos enfermos) antes que isso se torne uma urgência. Não é fácil achar um padre aos domingos, por exemplo.
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Conversar antes que a comunicação se torne difícil ou impossível muda tudo. Respeitar as vontades sobre o lugar de velório e enterro ou cremação e refletir sobre quem abraçará os que ficam pode trazer paz e facilitar a burocracia da morte. Ela demanda um monte de decisões e atos apesar do absurdo da dor e da ausência.
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É reconfortante aceitar ajuda para aquelas coisas que parecem pequenas, como buscar alguém, pagar uma conta ou comprar comida. Elas são grandes agora.
Algumas pessoas estranham que minha filha, de três anos, esteja consciente do seu primeiro luto. Mas, por aqui, nós nunca interditamos os assuntos por parecerem distantes. A morte nunca é distante. Ela está sempre perto de várias pessoas e nada impede que essas pessoas sejam as nossas. Ou nós mesmos.
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