Joe Biden não será o primeiro presidente americano a perder uma eleição e se lançar a uma viagem à floresta amazônica.
O democrata que acaba de ver sua vice-presidente, Kamala Harris, ser derrotada nas urnas pelo republicano Donald Trump, desembarca em Manaus neste domingo, dia 17.
Com uma visita de menos de 24 horas à área, Biden vai a uma reserva amazônica nativa e terá um encontro com lideranças indígenas. Assim, ele se torna o primeiro presidente americano em exercício a pisar na floresta.
Antes de Biden, porém, há 111 anos, era um ex-presidente americano que desembarcava na maior floresta tropical do mundo para tentar se recuperar de uma derrota eleitoral. A empreitada de Theodore Roosevelt, porém, nada teria de breve.
A expedição deu à Amazônia um rio batizado de Roosevelt. E quase custou a vida ao ex-mandatário americano.
Presidente do Big Stick
Depois de dois mandatos (1901 a 1909), Theodore Roosevelt, ainda hoje o presidente mais jovem a chegar ao cargo, aos 42 anos, perdeu o pleito de 1912.
Aquela campanha, na qual ele chegou a ser baleado em uma tentativa de assassinato, era vista por ele mesmo como sua última chance de voltar à Casa Branca.
No poder, Roosevelt se notabilizara por sua política externa do Big stick (grande porrete, em tradução para o português), projetando globalmente a imagem do poderio militar americano contra possíveis intervenções europeias nas Américas.
Enquanto isso, aprofundava a presença norte-americana na região latina, empreendendo por exemplo a construção do Canal do Panamá.
Mas Roosevelt era também um naturalista e um taxidermista. Conhecido como “o presidente conservacionista”, ele colocou sob proteção federal 230 milhões de acres de terras públicas nos oito anos de gestão, incluindo 150 florestas nacionais.
Criou as primeiras 55 reservas federais de aves e caça, além de 5 parques nacionais. O Museu de História Natural de Nova York o descreve como um “pioneiro” da conservação natural e batizou seu salão de biodiversidade em homenagem a Roosevelt.
Uma criança de saúde frágil, Roosevelt se tornara um adulto aplicado em manter vigor físico e em mostrar resiliência diante de dificuldades.
Ao perder a mãe e a mulher no mesmo dia, por causas distintas, em vez de guardar luto, ele se lançou a uma expedição exploratória às áridas formações geológicas das Dakota Badlands. Mais tarde, quando deixou a presidência, passou mais de um ano em um safari pela África.
“Theodore Roosevelt perdeu sua última tentativa de voltar ao poder e estava neste estranho lugar em que ele já não era mais nada. Mas sempre foi um aventureiro e também um homem em busca de um sentido para a vida. E foi encontrá-lo em uma expedição a uma área remota da Amazônia”, afirma o pesquisador Pedro Libânio, da Casa Rui Barbosa, especialista na expedição que Roosevelt e sua equipe americana fizeram sob o comando do então Coronel Cândido Rondon, um lendário indigenista e expedicionário da Amazônia brasileira.
Deixar os ossos na América do Sul
Roosevelt chegou à América do Sul em 1913. Sua ideia inicial era dar uma palestra em Buenos Aires, mas ao chegar ao Rio de Janeiro, ele é informado de que Rondon lideraria uma expedição para tentar percorrer por completo o então chamado Rio da Dúvida.
Tratava-se de uma região até então jamais explorada na Floresta Amazônica. Seriam cerca de 1,6 mil quilômetros por dentro da floresta, em canoas. Ou, como Roosevelt definiu, “sua última chance de ser um menino”.
“Se rememorarmos a vida dele, veremos que ele se lança nessas expedições difíceis e perigosas sempre para provar algo aos outros, mas principalmente para provar algo a si mesmo. Ele foi para a América do Sul pensando que faria uma (outra) viagem, mas o ministro das Relações Exteriores do Brasil (Lauro Muller, do gabinete do presidente Hermes da Fonseca) lhe diz: ‘Ei, acabamos de descobrir a nascente deste rio, não temos ideia para onde ele vai.’ E este é Theodore Roosevelt. (…) Para ele, isso era simplesmente irresistível: a cabeceira de um rio, que não está em nenhum mapa e ninguém sabe o que vai acontecer em cada curva. Isso combina completamente com o personagem. Não havia como ele resistir a algo assim”, disse Candice Millard, autora de “The River of Doubt – Theodore Roosevelt’s Darkest Journey” (O Rio da Dúvida – A jornada mais sombria de Theodore Roosevelt), livro de 2005 no qual ela rememora a jornada, em uma entrevista à Theodore Roosevelt Presidential Library.
Mas esse tipo de excursão tinha uma série de riscos, e Roosevelt os conhecia. Sabia, por exemplo, que Rondon normalmente tinha que pagar sete vezes mais do que qualquer outro empregador em jornadas amazônicas —e mesmo assim podia ter dificuldade em recrutar seus homens.
Conhecia o perigo de piranhas, animais peçonhentos e tinha ele próprio —ou assim registrou-se na história— caçado uma onça pouco antes do início da descida do Rio da Dúvida. Nenhum alerta surtiu efeito para dissuadir o ex-presidente.
“Se for necessário que eu deixe meus ossos na América do Sul, estou pronto pra isso”, ele escreveu antes da partida. E foi literalmente o que quase aconteceu.
Uma dose letal de morfina
O início da jornada pareceu enganá-lo sobre o que estava por vir. Anotador compulsivo (dedicava-se quatro horas por dia às suas notas), ele fez uma descrição bucólica do princípio da expedição.
“Borboletas de vários tons esvoaçavam sobre o rio. O dia estava nublado, com pancadas de chuva. Quando o sol rompeu as fendas nas nuvens, seus raios transformaram a floresta em ouro”, escreveu Roosevelt em seu livro Through the Brazilian Wilderness (algo como Pela Selva Brasileira, em tradução livre).
Na verdade, o rio adentrava uma mata extremamente densa e era sinuoso, cheio de corredeiras e cachoeiras intransponíveis.
Aos poucos, eles perderam parte de seus suprimentos, as próprias embarcações (substituídas por rústicas canoas indígenas) e até um dos homens, que se afogou.
Segundo o relato de Roosevelt, para cada dez minutos navegando, a expedição gastava entre 8 e dez horas carregando tudo nas costas e abrindo caminho na mata até chegar ao próximo ponto navegável do Rio da Dúvida.
Do lado de Roosevelt, a viagem também havia sido pobremente planejada. Na prática, em meio à aventura, eles descobriram que embora carregassem azeite —não exatamente um item essencial— não dispunham de quantidades razoáveis de carne e outros produtos básicos. Passaram a ter de se alimentar de palmito e caça de macacos para sobreviver.
“Havia ali um óbvio choque de civilizações”, afirma Libânio, que completa: “Enquanto Rondon e seus homens eram respeitosos e mostravam deferência ao conhecimento dos indígenas, esse não era o comportamento geral dos americanos, que os viam como atrasados e inferiores”.
Em dado ponto da expedição, o padre Augustine Zham, amigo de Roosevelt, chegou a demandar que os indígenas, que ajudavam a carregar os suprimentos dos brasileiros, o carregassem pelo resto do caminho em uma liteira.
Arrogante e agressivo no tratamento com os nativos, ele acabou sendo mandado embora da expedição pelo ex-presidente americano, que respeitou a liderança de Rondon —e creditou a ela o fato de terem sobrevivido a encontros pouco amistosos com comunidades indígenas de pouco contato.
Em outro momento, em uma discussão, um dos integrantes da expedição matou o outro e se refugiou na mata. Roosevelt exigia que uma busca fosse feita para recapturá-lo e fazê-lo pagar pelo crime.
Rondon descartou a ideia, convencendo o ex-presidente americano de que deixar o homem pra trás, abandonado à própria sorte em meio à mata, já seria castigo suficiente. “Era talvez o choque entre o caráter institucional que tinha um ex-presidente americano versus o lado prático de quem conhecia mais do que ninguém aquela terra sem lei”, diz Libânio.
Mas o ponto mais dramático da viagem viria próximo a seu fim. Roosevelt —assim como outros integrantes da expedição— contraiu malária. Além disso, feriu sua perna em uma canoa e contraiu uma infecção, que lhe causou febre de quase 41 graus Celsius.
Mosquitos, abelhas, carrapatos e formigas venenosas causavam feridas purulentas em sua pele branca. Ele já não suportava se sentar, nem mesmo levantar a cabeça. O naturalista George Cherrie, convidado por Roosevelt a se juntar à viagem, chegou a desenganá-lo em seu diário de campo: “Não creio que ele (Roosevelt) vá sobreviver a essa noite”.
O próprio Roosevelt estava convencido de que não tinha mais saída. Tanto assim que passou a demandar que Rondon e o filho, Kermit (que também compunha a expedição), o deixassem para trás, munido de uma dose letal de morfina, porque Roosevelt temia que o esforço de carregá-lo faria com que nenhum dos companheiros sobrevivesse à jornada.
Mas Rondon e Kermit não aceitaram o pedido de Roosevelt e conseguiram retirá-lo com vida da floresta —embora o ex-presidente americano tenha perdido 25kg, um quarto de seu peso corporal original, e passado a sofrer com malárias recorrentes pelo resto da vida. “A selva brasileira me roubou dez anos de vida”, escreveu Roosevelt em uma carta a um amigo. Não estava errado. Ele morreria apenas cinco anos após o fim da viagem.
Para a satisfação de Roosevelt, porém, a expedição foi considerada um sucesso porque logrou mapear o curso do Rio da Dúvida, rebatizado em sua homenagem. O ex-presidente americano, no entanto, viu no ato uma injustiça.
Para ele, o Rio deveria ter recebido o nome de Rondon, que garantiu que ele voltasse da Floresta Amazônica para contar sobre os milhares de espécies animais e vegetais que encontrou ali. A jornada acabou em maio de 1914. Levaria mais doze anos até que novos exploradores voltassem a conseguir navegar por completo o Rio Roosevelt.
Esta reportagem foi publicada originalmente aqui.