Quem entra no apartamento dos brasileiros Isabella Ruiz e Raphael Ballet, em Londres, vê logo uma cesta repleta de brinquedos.
São da Gaia, uma border collie de 6 anos que também emigrou do Brasil para o Reino Unido.
A quantidade de brinquedos —215 quando esta reportagem foi escrita— chama atenção, mas o que impressiona mesmo é que Gaia conhece cada um deles pelo nome.
Ela tem um dom raro. Gaia faz parte de um pequeno grupo, apelidado por pesquisadores de “cães gênios”, com um talento excepcional para aprender nomes de objetos —uma habilidade cognitiva que separa seres humanos de outros animais.
Até agora, apenas 41 cachorros no mundo foram identificados com essa habilidade, segundo um grupo de pesquisa da Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste (Hungria).
Isso não é a mesma coisa que aprender comandos relacionados a ações, como pedidos para sentar ou deitar, por exemplo, como ocorre no adestramento, explicam os pesquisadores.
Gaia é capaz de buscar os brinquedos em outros cômodos, um a um, quando um adulto pede, sem dicas gestuais dos humanos.
E tem mais: o que mais impressionou Isabella, Raphael, os pesquisadores e a equipe da BBC News Brasil foi a capacidade de selecionar o brinquedo solicitado por um processo de exclusão.
Quer dizer, se você colocar um novo brinquedo (cujo nome ela ainda não conhece) entre os objetos já conhecidos, Gaia é capaz de buscá-lo após ser pedido pelo nome que ela nunca tinha ouvido antes.
Essas habilidades foram testadas e relatadas pelos pesquisadores nos últimos anos —e a BBC News Brasil foi ver de perto.
A seguir, conheça a trajetória de Gaia, como ela foi descoberta por um grupo de pesquisa na Europa, e o que os estudos sobre o tema conseguem explicar sobre esse talento até agora.
Gaia chegou à casa de Isabella e Raphael com dois meses e muita disposição para brincar, contam eles.
“Era um filhote com muita energia, e isso deixou a gente um pouco assustado”, lembra Isabella.
Na época, o casal morava em São Paulo e decidiu buscar ajuda de uma adestradora para criar uma rotina de atividades para Gaia, que incluía brincadeiras de esconder objetos para a cachorra encontrar.
Com menos de um ano, Gaia sabia identificar os nomes de três brinquedos, o que chamou a atenção da adestradora Carolina Jardim, que tem 15 anos de experiência na área.
“Até mesmo para um border collie, que é uma raça com muita disposição para aprender, ela mostrou uma facilidade fora do comum de memória”, diz Carolina, que também é mestranda em Psicologia Experimental na Universidade de São Paulo (USP).
Apesar de ter se surpreendido, naquele momento a adestradora ainda não sabia que Gaia tinha uma habilidade tão rara.
Mas o desempenho de Gaia foi marcante.
Em março de 2020, quando Gaia tinha cerca de 2 anos, Carolina soube do estudo em que pesquisadores estrangeiros buscavam cachorros com um talento fora do comum para identificar nome de brinquedos.
“Quando eu soube da pesquisa, na hora lembrei da Gaia e falei com os tutores: é a cara de vocês, acho que a Gaia tem potencial”, conta à BBC News Brasil.
Isabella e Raphael entraram em contato com o grupo de pesquisadores do departamento de Etologia da Universidade de Eötvös Loránd, na Hungria, que pediu ao casal para fazer um teste caseiro com a Gaia.
Para integrar a pesquisa, era necessário que a cachorra soubesse um número mínimo de brinquedos, e em condições controladas, sem interferência de Isabella, de Raphael ou de adestradores.
Era uma regra, por exemplo, que os brinquedos deveriam ser colocados fora do campo de visão dos humanos e de Gaia.
O resultado surpreendeu Isabella e o marido.
“A gente colocou uns 20 brinquedos no corredor de casa e foi pedindo para ela buscar. E ela foi trazendo, um por um. A gente ficou muito impressionado que ela sabia tantos nomes, porque a gente nunca tentou ensinar”, conta.
No mesmo ano, a pesquisadora Claudia Fugazza, PhD em Etologia que lidera o projeto, visitou Gaia no Brasil para realizar alguns testes pessoalmente.
Além do teste padrão, Fugazza desafiou Gaia a encontrar os brinquedos no escuro e a identificar brinquedos cujo nome ela nunca tinha escutado.
Fugazza disse que, por mais que pesquisasse esse talento em cachorros e já tivesse conhecido naquele momento outros dois cães com essa habilidade, ela ficou impressionada com Gaia.
“Foi incrível vê-la em ação e o quão rápido ela aprendia. Fiquei particularmente surpresa quando vi como ela excluía objetos que já conhecia ao ouvir o nome de um brinquedo desconhecido”, conta.
Brinquedo novo
A seleção de brinquedos por meio do processo de exclusão também surpreendeu a equipe da BBC News Brasil, que reproduziu o experimento quando visitou o apartamento de Isabella e Raphael.
Para fazer o teste, a BBC levou um brinquedo que Gaia não conhecia e deu o nome de “pirulito”.
Sem que Gaia visse, o objeto foi colocado no meio de outros 10 brinquedos conhecidos por ela, em um corredor do apartamento.
Da sala, Isabella pediu, primeiro, que Gaia pegasse um brinquedo que ela já conhecia —para eliminar a possibilidade de Gaia ir diretamente no objeto desconhecido simplesmente por ser uma novidade.
Em seguida, ela pediu para Gaia pegar o “pirulito” —brinquedo que a cachorra nunca tinha visto ou escutado o nome.
Ao ouvir a nova palavra, Gaia foi até o cômodo ao lado e voltou com o pirulito, o brinquedo novo.
“É uma habilidade cognitiva impressionante porque os seres humanos também fazem isso. Se você colocar vários objetos juntos e pedir a uma criança para pegar um objeto cujo nome ela nunca ouviu antes, ela é capaz de raciocinar por exclusão e pegar o objeto novo”, explica Fugazza à BBC News Brasil.
“Eles inferem que, como aquele brinquedo novo é o único desconhecido, e os outros têm um nome que eles já conhecem, o novo é aquele ao qual você está se referindo.”
Memória por dois anos
Quando a pesquisa começou, em 2018, Fugazza diz que o objetivo era estudar como os cães entendiam o que os seres humanos falavam.
Segundo ela, o grupo não sabia que existiam animais capazes de reconhecer palavras de objetos —até conhecer um cachorro que já possuía essa habilidade linguística.
“Aquilo me intrigou muito, porque a linguagem por meio de palavras é uma característica do ser humano. Mas a gente pensou: se tem um, pode ter mais. E começamos a procurar.”
Gaia entrou oficialmente para a pesquisa em 2020 e foi a primeira cachorra brasileira a ser identificada como gifted word learner dog (em português, um cachorro com talento de aprender palavras).
Até então, havia cinco cachorros de outros países já certificados com esse talento.
Naquele momento, segundo Fugazza, os pesquisadores tinham uma dificuldade muito grande em tornar o estudo conhecido e encontrar mais cachorros com essa habilidade.
Então, durante a pandemia, eles criaram um desafio internacional de cães gênios, com a participação dos seis cachorros, incluindo a Gaia.
A brincadeira consistia em duas fases: na primeira, os cachorros tinham que aprender 6 objetos em uma semana.
Na segunda fase, eram 12 brinquedos em uma semana.
A disputa foi transmitida ao vivo pelo canal do YouTube “Genius Dog Challenge”.
Gaia gabaritou nos dois desafios, acertando todos os objetos.
O mais surpreendente, contudo, de acordo com a pesquisadora, foi perceber que, dois anos após o desafio, os cachorros ainda lembravam do nome de objetos com os quais perderam o contato.
“Pedimos aos donos de cachorros para esconder os brinquedos por dois anos para fazer um teste de memória. E ficamos impressionados em ver que a maioria dos cachorros lembrava de uma grande parte dos objetos”, conta.
Quando esse teste de memória foi feito com Gaia, ela lembrou de nove de 12 brinquedos.
Como ensinar palavras a um cachorro?
A pergunta que Isabella e Raphael mais recebem nas redes sociais, em um perfil onde compartilham a rotina da Gaia, é: Como eles ensinaram o nome dos brinquedos?
“A gente não ensinou, ela aprendeu brincando”, diz Isabella.
Estudos realizados pela Universidade de Eötvös Loránd indicam que, segundo o que se sabe até agora, a habilidade de aprender palavras não pode ser ensinada. O que é possível é que um cachorro que já tem essa habilidade aprenda novas palavras.
“No início da pesquisa, eu estava convencida de que era possível ensinar ao menos alguns nomes. Mas falhamos em todas as vezes que tentamos”, afirma Fugazza.
Em um dos experimentos, o grupo de pesquisadores selecionou 39 cachorros de diferentes raças (19 adultos e 15 filhotes) para ensinar nomes de brinquedos.
Eles passaram dois meses com sessões de brincadeiras que envolviam esses objetos, reproduzindo o que os donos de cachorros com essas habilidades contaram que faziam.
No fim do período, apenas um cachorro havia aprendido o nome de brinquedos.
“Parece ser um dom, que ou o cachorro tem ou não”, diz a pesquisadora.
Por que alguns cachorros conseguem e outros não?
Uma das questões que mais intriga os pesquisadores —e o público— é: por que alguns cachorros têm essa habilidade e outros não?
“A gente ainda não tem essa resposta. Pode estar associado a um conjunto de fatores. Pode ser um fator genético, pode ser do ambiente em que eles vivem, ou pode ter relação a uma exposição desde muito novos a várias palavras enquanto brincavam. Essas são algumas hipóteses”, diz Fugazza.
“A única coisa que a gente sabe é que eles não aprenderam de forma sistemática, por meio de treinamento, mas de forma espontânea”.
A pesquisadora diz que a maioria dos donos de cachorros que participam do projeto são como Isabella e Raphael: pessoas comuns, com uma “vida normal”, sem especialização em técnicas de adestramento.
“No geral, eles não sabem dizer como os cachorros aprenderam as palavras, porque eles nunca tiveram a intenção de ensinar. Mas a percepção deles é que os cachorros têm muito mais disposição para brincar do que outros cachorros”, afirma.
Apesar de mais da metade dos cachorros da pesquisa serem border collies —dos 41 cachorros, 23 são desta raça— Fugazza lembra que a maioria dos border collies não têm essa habilidade de aprender palavras
“Eu tenho um border collie e ele não sabe nenhuma palavra”, diz, rindo. “Além disso, há cachorros de outras raças na pesquisa, como shitzu, além de vira-latas”.
Além dos 23 border collies entre os 41 cães identificados pela pesquisa, há também outros quatro cachorros que são misturas com border collie, três labradores, dois lulu-da-pomerânia, além de nove cachorros de outras raças ou vira-lata.
Os cachorros foram encontrados em 9 países: Estados Unidos, Reino Unido, Brasil, Canadá, Noruega, Hungria, Holanda, Portugal e Espanha.
É adestramento?
Fugazza destaca que a habilidade dos cães para aprender palavras é diferente da capacidade de aprender comandos e ações, o que a maioria dos cachorros consegue aprender por meio de treinamento.
“Para aprender nomes de ações, os cães usam os princípios de aprendizagem por condicionamento, formando associações. Na presença de um determinado estímulo, como o som de ‘senta’ ou ‘deita’, eles produzem um comportamento específico, que gera uma recompensa. Esse é um mecanismo de aprendizagem amplamente difundido e que não está relacionado à linguagem”, explica.
“Já no aprendizado de palavras, estamos falando de uma habilidade cognitiva de linguística, algo que pertence à espécie humana, mas que esses animais, de alguma forma, aprenderam em atividades do dia a dia, brincando”.
Ainda não se sabe quais mecanismos esses cachorros usam no processo de aprendizagem e se, de alguma forma, se assemelham ao usado por crianças para aprender palavras.
No entanto, segundo Fugazza, os estudos realizados indicam que os cães usam diversos sentidos para reconhecer os objetos.
“Em experimentos que fizemos no escuro, observamos que eles são mais devagar para pegar objetos, o que indica que eles usam principalmente a visão. Mas foi interessante ver que, na ausência de luz, durante as buscas por brinquedos, eles usam outras habilidades sensoriais como olfato e tato”, destaca.
Como saber se meu cachorro é ‘superdotado’?
Se um cachorro sabe os nomes de três ou quatro objetos, é possível que ele seja “superdotado” e consiga aprender novas palavras quando exposto a outros brinquedos, segundo Fugazza.
“Até onde a gente sabe, se um cachorro sabe três ou quatro nomes, é fácil para ele conseguir ampliar seu vocabulário para 50 ou 100. O mínimo para fazer o teste são dois”, afirma.
Esse número pode parecer pouco, mas a pesquisadora explica que, por mais esperto que um cachorro seja, poucos são realmente capazes de desenvolver habilidades de linguagem.
“Muitos donos pensam que seus cachorros sabem os nomes de objetos porque eles são muito bons em ler nossa linguagem corporal. Mas, quando você pede a um cachorro para pegar uma bola, você normalmente está dando uma dica visual ou fazendo uma movimentação com o seu corpo que indica o que você quer ou onde o objeto está. Então, o cachorro pega a bola não porque ele sabe a palavra, mas diante do contexto”, afirma Fugazza.
Por isso, para verificar se um cachorro tem ou não uma habilidade relacionada à linguagem, os pesquisadores realizam testes em condições controladas, em que o cachorro precisa identificar os objetos sem qualquer tipo de dica, como foi feito com a Gaia.
“A gente coloca vários brinquedos espalhados em um cômodo diferente daquele que o tutor e o cachorro estão. Assim, quando o tutor pede para que o cachorro busque um determinado brinquedo, ele não tem como ajudar por meio de um contato visual que direcione o cachorro. O cachorro precisa ir até o outro cômodo sozinho e resolver esse problema, apoiando-se puramente na palavra que ouviu”, explica a pesquisadora.
Quantas palavras um cachorro ‘superdotado’ consegue aprender?
O número de palavras que um cão pode aprender varia, dizem os pesquisadores.
Os cachorros identificados pela universidade em Budapeste sabem entre 200 e 400 nomes de brinquedos. Mas há registros na literatura de um cachorro que aprendeu mais de mil palavras.
“Quanto mais brinquedos ele tiver, mais nomes ele vai saber. A gente não sabe se existe um limite”, afirma Fugazza.
“Os estudos mostram que eles precisam ouvir apenas quatro vezes o nome de um novo objeto para aprendê-lo. E isso leva questões de minutos, o que é impressionante”.
Embora apenas 41 cachorros com essa habilidade tenham sido encontrados ao redor do mundo, os pesquisadores acreditam que existem mais e divulgam informações na página do projeto.
“Temos pouco acesso a países cuja língua oficial não seja o inglês, e a gente acredita que, por isso, existam muitos cachorros com essa habilidade que ainda não foram descobertos”, diz Fugazza, ressaltando a contribuição desses cães para a ciência.
“Além de ser incrível ver as habilidades que esses cachorros têm, estudá-los pode nos ajudar a entender como a linguagem em seres humanos evoluiu.”