Existem muitas razões práticas para se preocupar com a degradação de ambientes naturais, mas talvez uma das mais simples e palpáveis seja a seguinte: esse tipo de processo costuma produzir uma perturbação num contexto que anteriormente era estável (no mínimo na escala de tempo de muitas vidas humanas sucessivas). Perturbações, via de regra, geram alguma forma de caos: dominós caindo uns sobre os outros. E o caos, a bagunça, costuma ser desagradável e imprevisível.
Tudo isso soou muito genérico? Bem, considere que, para cada 1% de uma área que é desmatada na Amazônia brasileira, os casos de malária aumentam 6,3%. E isso não acontece um ano depois do desmate. Os casos da doença sobem um mês depois que as árvores vêm abaixo.
Essa conclusão vem de um trabalho intrigante, publicado na semana que passou na revista científica PNAS. Seus autores incluem especialistas que trabalham no Amapá e nos Estados Unidos, entre eles Marcia Castro, professora da Escola de Saúde Pública de Harvard e colunista desta Folha. Convém conhecer alguns dos detalhes do estudo para vislumbrar a maneira contraintuitiva pela qual o desmatamento derruba dominós de saúde pública junto com os troncos de árvore.
Em primeiro lugar, conforme Castro e seus colegas explicam, a relação entre uma coisa e outra não é propriamente linear, tanto que nem sempre os estudos sobre o tema apontam a mesma correlação entre derrubadas e doença infecciosa.
O que acontece é que a escala espacial e temporal exata do que está acontecendo parece ser o mais relevante. Esses contextos específicos é que estariam por trás do que os especialistas chamam de “malária de fronteira”: o aumento rápido dos casos da doença associado ao avanço inicial do desmatamento em determinada localidade.
Trata-se de uma consequência direta da ecologia do mosquito transmissor –em território amazônico, eles pertencem à espécie Nyssorhynchus darlingi.
O habitat preferencial do bicho é a borda de mata, ou seja, a fronteira entre floresta e área desmatada. É ali que ele tem mais chances de achar água clara, limpa e rasa, com alguma iluminação solar, com vegetação aquática, mas sem matéria orgânica em decomposição. Tais condições, vale dizer, quase nunca vão estar presentes numa mata intacta. Mas também tendem a não estar presentes numa região já amplamente devastada.
A sacada do trabalho de Castro e seus colegas foi usar os dados mais detalhados possíveis (em escala mensal no que diz respeito ao tempo e em escala municipal no que diz respeito ao espaço) sobre desmatamento e malária na Amazônia brasileira, entre os anos de 2003 e 2022. São, respectivamente, 5,5 milhões novos casos da doença e 207 mil km² de floresta perdida nesse período.
Em média, o crescimento dos casos de malária aparece com um mês de atraso em relação ao aumento da taxa de desmate. Além disso, o aumento também parece ser potencializado pela presença do garimpo, que esburaca a paisagem e depois a abandona, o que cria novos microambientes para o mosquito.
O resumo da ópera me parece simples. A não ser que alguém aí tenha um apreço particular pelo micróbio da malária, impedir que áreas relativamente pouco desmatadas virem alvo da motosserra deveria ser prioridade de saúde pública.
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