A criação de gatos de raça sempre gerou controvérsias. Mas uma nova tendência de gatos criados para se parecerem com cães da raça american bully XL pode ser um dos modismos mais preocupantes até agora.
Os chamados “bully cats” (gatos valentões) se originaram nos EUA e são resultado de uma reprodução de mutantes. Ao contrário da criação de pedigree, que se concentra em manter os animais de raça pura, a de mutantes envolve a combinação intencional de raças genéticas diferentes para criar gatos com uma aparência específica. Neste caso, misturam o gene que causa a falta de pelos em gatos da raça sphynx com o gene responsável pelas pernas curtas de outros da raça munchkin, tornando os gatos valentões um cruzamento munchkin-sphynx.
Esses felinos compartilham uma grande semelhança com os “bully dogs” (cães valentões), um grupo de raças caracterizadas por uma constituição sólida, corpo largo e pelagem curta. Os american bully XL foram banidos no Reino Unido em 2023. Recentemente, “bully cats” chegaram ao Reino Unido, onde surgiram contas de mídia social promovendo essa nova raça mutante.
De acordo com Marjan van Hagen e Jeffrey de Gier, especialistas em bem-estar animal e reprodução da Universidade de Utrecht, na Holanda, essas mutações podem ter consequências graves para a saúde dos bichanos e limitar sua liberdade de movimento. Gatos já têm uma capacidade limitada de regular a temperatura corporal e isso é dificultado ainda mais pela falta de pelos e os torna mais suscetíveis a infecções respiratórias.
A falta de pelo também pode levar a queimaduras solares e câncer de pele. Assim como o sphynx, os “bully cats” também não têm bigodes, dos quais dependem para se comunicar, circular em seu ambiente e avaliar as dimensões espaciais.
Os gatos de pernas curtas enfrentam outros problemas porque isso limita sua capacidade de pular, podem colocá-los em desvantagem em brigas e levá-los a condições de saúde dolorosas. Embora os criadores afirmem que os gatos valentões são saudáveis e vivam muito, ainda é muito cedo para determinar sua saúde e bem-estar a longo prazo.
Alguns criadores também dizem que estão examinando esses gatos para detectar condições como doenças cardíacas. Isso pode ajudar a prevenir problemas de saúde, mas não compensa e nem pode superar todos os outros problemas de saúde e bem-estar dos mutantes.
Um estudo de maio de 2024, feito pela epidemiologista veterinária Kendy Tzu-Yun Teng e colegas, avaliou a expectativa de longevidade em gatos do Reino Unido e descobriu que eles vivem, em média, quase 12 anos, mas os sphynx têm quase a metade de expectativa: apenas 6,7 anos. Os gatos valentões podem enfrentar o dobro do número de desafios encontrados pelas raças sphynx e munchkin.
Na natureza, espécies não relacionadas que enfrentam desafios ambientais comparáveis frequentemente desenvolvem características semelhantes, um processo conhecido como evolução convergente. Apesar de virem de diferentes caminhos evolutivos, essas espécies evoluíram para parecer e se comportar de maneiras semelhantes.
Tomemos como exemplo o planador do açúcar da Austrália. Ele se parece e se comporta de forma muito semelhante ao esquilo voador dos Estados Unidos, porém um é marsupial e, o outro, um mamífero. Ambos enfrentaram o problema de como se mover eficientemente em uma copa florestal e desenvolveram a mesma solução.
De forma semelhante, muitos animais domesticados compartilham características comuns, conhecidas coletivamente como síndrome de domesticação, incluindo maior mansidão, comportamento juvenil, orelhas flexíveis e dentes menores. Características que os ajudaram a se adaptar à vida com seres humanos. No entanto, a semelhança entre cães e gatos valentões não vem desse processo gradual e natural. Em vez disso, é o resultado de reprodução seletiva com base na estética.
A veterinária e cientista de bem-estar animal Wenche Farstad resume esse processo como reprodução por curiosidade ou fofura em seu artigo, publicado em 2018, sobre reprodução ética. Enquanto as pessoas normalmente consideram características como olhos redondos e nariz curto particularmente fofos, a criação para ausência de pelos e pernas mais curtas está mais alinhada com o conceito de curiosidade.
Nesse caso, a semelhança entre cães e os gatos valentões tem mais a ver com o design orientado pelo homem, em que a aparência é priorizada. O gato valentão parece ter sido criado intencionalmente para se assemelhar ao cão valentão, talvez devido à sua percepção entre os homens jovens como uma espécie de símbolo de status.
Os gatos valentões conseguiriam sobreviver sem humanos?
As mutações que prejudicam a sobrevivência e a reprodução geralmente se tornam raras na natureza. No entanto, os seres humanos ignoram a seleção natural ao escolher quais animais se reproduzem, permitindo que características que seriam desvantajosas na natureza persistam.
Exemplos disso podem ser vistos em várias espécies domésticas. Devido à musculatura de seus bezerros, o gado da raça belgian bBlue requer cesarianas em mais de 90% dos nascimentos.
Outro animal de fazenda, o frango de corte moderno, foi criado para crescer muito mais rápido do que seus equivalentes selvagens. Se pudessem viver mais do que sua idade normal de abate, muitos não sobreviveriam. Os gatos valentões provavelmente também teriam dificuldades para sobreviver na natureza, sem humanos para cuidar deles.
Os programas de cruzamento de raças podem ajudar a aumentar a diversidade genética e reduzir características prejudiciais em muitas raças. No entanto, para raças mutantes como o “bully cat”, em que a ausência de pelos e pernas curtas são características definidoras, essa não é uma solução realista.
Os potenciais donos de animais de estimação precisam estar cientes dos riscos associados à posse de raças mutantes e experimentais. Os consumidores detêm o poder de compra. É possível desencorajar os criadores a priorizar a estética em detrimento da saúde e bem-estar dos animais, recusando-se a comprar raças com características extremas.
A moda da criação ética pode garantir que os gatos do futuro sejam mais saudáveis, mais felizes e livres para aproveitar o comportamento felino natural, como escalar, pular e relaxar no sol. Deveríamos deixar os gatos serem gatos.
Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original