A conferência de biodiversidade COP16, da ONU (Organização das Nações Unidas), aprovou neste sábado (2) a criação do mecanismo de DSI, instrumento que visa remunerar o conhecimento sobre a natureza, mas com uma redação considerado branda por alguns especialistas.
O evento aconteceu em Cali, na Colômbia. Outra discussão, a do Fundo Global de Biodiversidade, não teve desfecho.
A plenária final do evento, que começou na noite desta sexta (1º), foi encerrada por falta de quórum já na manhã deste sábado, diante da revolta de países emergentes com a postura das nações ricas (sobretudo da União Europeia).
Como mostrou a Folha, a COP não conseguiu ampliar os recursos disponíveis para a biodiversidade, após os países ricos terem suas posições questionadas pelas nações emergentes. O resultado foi um bloqueio das discussões.
Assim, o único desdobramento nesta área foi o anúncio de uma nova promessa de doação de US$ 163 milhões (cerca de R$ 930 milhões), aquém de uma defasagem do financiamento necessário estimado em bilhões.
Como a próxima COP de biodiversidade está marcada apenas para 2026, os debates vão seguir em eventos preparatórios que ocorrerão até lá.
A conferência aprovou a criação do chamado Fundo de Cali, que vai gerir os recursos oriundos do DSI, sigla em inglês para informação de sequência genética digital. O mecanismo deve servir para repartir os benefícios de determinado conhecimento com aqueles que o originaram.
De forma genérica, o instrumento deve funcionar da seguinte forma: um povo indígena desenvolve uma técnica medicinal a partir de determinada planta, que então é usada por uma farmacêutica para produção de remédios. Nesse exemplo, a empresa teria que remunerar a comunidade tradicional por seu conhecimento.
A versão final do texto ainda não foi divulgada, mas a Folha teve acesso a uma redação prévia. A reportagem também acompanhou as discussões na plenária do evento e conversou com pessoas diretamente envolvidas na negociação.
Foram incluídos como setores impactados que devem participar do mecanismo de repartição: farmacêuticos, suplementos alimentares e de saúde, cosméticos, criação de animais e plantas, biotecnologia, equipamento laboratorial e conhecimento científico relacionado a sequenciamento genético.
Na visão de representantes do Brasil e de organizações ligadas a países emergentes e povos indígenas, a decisão da COP deveria ter sido mais contundente. Eles apontam ainda ambiguidades.
Por exemplo, há possibilidade de que a repartição de benefícios seja calculada sobre a receita das empresas ou sobre o lucro —cujo cálculo é muito mais maleável e abre espaço para manobras contábeis.
Além do mais, o documento tem a expressão “deve” para descrever a obrigação das empresas e países em efetivar essa repartição de benefícios.
Os negociadores ouvidos pela reportagem lembraram que, em conferências anteriores, a COP já aprovou que tal mecanismo é obrigatório. Eles reclamaram que a redação deixa o mecanismo à mercê do engajamento de empresas e países em querer se empenhar para efetivar essa repartição.
Dizem que muitos detalhes ficaram para serem decididos em próximas reuniões e que não há clareza sobre como deve funcionar a relação do instrumento com as legislações nacionais de cada país.
“Existe muita incerteza sobre como vai funcionar na prática. Há várias áreas em que acreditamos que o funcionamento do mecanismo será um voto de confiança”, afirmou durante a plenária Gustavo Pacheco, negociador do Itamaraty que cuidou do tema em Cali, citando “leap of faith” (expressão usada para uma decisão tomada com base na confiança, sem garantias).
Ele defendeu que a decisão da conferência anterior, de que a repartição é obrigatória, é “clara como água” e deve ser respeitada por todas as partes, e citou o secretário-geral da ONU, António Guterres.
“Não é a decisão ideal, mas queria destacar o papel central que os povos indígenas e as comunidades locais têm neste mecanismo”, acrescentou Pacheco, acerca da possibilidade de que esses grupos acessem o fundo.
O fundo do DSI ficou sob uma governança paritária, o que é um dos principais pontos de divergência entre países ricos e em desenvolvimento no contexto do Fundo do Marco Global de Biodiversidade (GBFF, em inglês).
Atualmente, o GBFF tem uma estrutura que privilegia os países ricos. Estados Unidos, Canadá, Itália e Suécia, por exemplo, têm lugar e voto próprios.
Por outro lado, Brasil (país mais biodiverso do mundo) divide uma cadeira com a Colômbia (o segundo mais biodiverso) e Equador. Há blocos com até 16 países africanos.
Os países emergentes pleiteavam a criação de uma nova estrutura, com equidade entre as partes, o que não foi aceito pelas nações ricas, que são as maiores doadoras do fundo.
Esta deliberação começou já na manhã deste sábado. Após discussões entre as nações, o Panamá liderou um movimento de protesto dos emergentes e pediu que o quórum da plenária fosse conferido.
Como muitas delegações já haviam ido embora —o evento estava marcado para acabar na sexta (1º), o que não foi possível diante das divergências—, foi constatado que não havia representantes suficientes para seguir as discussões. A plenária acabou deixando este e uma série de outros pontos sem resolução.
O repórter viajou a convite da Fundação Ford, parceira no projeto Excluídos do Clima.