É consenso entre especialistas que é necessário regular as big techs e melhorar a educação midiática da sociedade para refrear a proliferação de materiais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes (CSAM, na sigla em inglês). Mas o governo e o Congresso ainda não têm propostas prontas para enfrentar o problema.
No Senado, dois projetos de lei que tratam do tema estão em discussão —um deles desde 2022 e outro, de maio de 2023. Responsabilidade do governo federal, o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, criado em 2013, expirou em 2020 e deve ter nova versão somente em maio do ano que vem.
Em janeiro, foi aprovada a lei 14.811, que prevê a criação da Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania precisa elaborar um decreto para regulamentar a política, mas ainda não há previsão para a sua publicação.
As respostas do Congresso Nacional e do governo federal estão atrasadas, avalia Jorge Barreto, investigador da Unidade de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior 5, em São José do Rio Preto.
“Os criminosos têm uma rede de comunicação bem articulada. Eles vão para as plataformas que não colaboram com a polícia”, afirma ele, que tem mais de dez anos de experiência no combate ao abuso infantojuvenil online. Um dos projetos em tramitação, o PL 2.628/2022, do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), responsabiliza as plataformas pelo combate ao abuso e à exploração sexual infantojuvenil, impondo transparência à quantidade de CSAM identificado e reportado às autoridades.
Ana Cláudia Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana, aposta no projeto de lei. “Precisamos ter maior comprometimento e responsabilização das plataformas no combate ao abuso sexual para conter a rapidez de disseminação desses conteúdos”, afirma ela.
O projeto aguarda parecer do relator, o senador Flávio Arns (PSB-PR), para ser votado em caráter terminativo na Comissão de Comunicação e Direito Digital. Se aprovado, seguirá diretamente para a Câmara dos Deputados.
Segundo o senador, o relatório está pronto e em revisão e deverá ser submetido para discussão nas próximas semanas. A expectativa é que a aprovação no Senado ocorra ainda neste ano.
O segundo projeto de lei, o PL 2.338/2023, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), propõe regular o uso da inteligência artificial no Brasil, com a classificação de risco de sistemas de IA. As ferramentas consideradas de “risco excessivo” seriam vedadas, incluindo os sistemas que possibilitam ou facilitam a produção de CSAM.
Atualmente na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial, com relatoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO), o projeto já recebeu 145 sugestões de emenda. Desde o dia 4 de setembro, está com o relator, aguardando prosseguimento.
No governo federal, algumas propostas ainda estão no papel. Na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, um grupo de trabalho iniciou em março a elaboração do Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes.
Entre outros temas, o guia abordará os riscos a que crianças e adolescentes estão expostos na internet e como mitigá-los. Esse documento vai subsidiar cartilhas, campanhas e processos formativos para diversos públicos. Seu lançamento está previsto para este ano. O
Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) montou um grupo temático em junho para desenvolver a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente no Ambiente Digital. Sua publicação deve ocorrer até dezembro.
De acordo com Cifali, que representa o Instituto Alana no Conanda, essa política vai padronizar a coleta e a nomenclatura dos dados e desenhar ações integradas e multissetoriais de formação, prevenção, governança, monitoramento e avaliação.
Thiago Tavares, presidente da Safernet, organização de defesa dos direitos humanos na internet, pondera que os dados sobre CSAM já são divulgados pelas plataformas, devido a legislações na Europa e nos Estados Unidos. Caberia ao Conanda especificar como esses dados devem ser repassados às autoridades brasileiras.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania instituiu a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes para atualizar, até maio de 2025, o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
Karina Figueiredo, que integra a comissão como representante do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, afirma que o plano indicará ações, metas, responsáveis e previsão orçamentária em diferentes eixos, como prevenção, atendimento e participação.
Segundo Figueiredo, o ponto central do plano será a responsabilização das plataformas digitais. Contudo, também ressalta que é necessário avançar na legislação sobre o tema.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) reconhece os crimes de produção e publicação de material de abuso e exploração sexual infantojuvenil desde a sua aprovação, em 1990.
Em 2008, tornaram-se crimes disponibilizar, adquirir e possuir esse tipo de material e simular participação de crianças e adolescentes em cena de abuso sexual.
Essa alteração na lei possibilitou que serviços de armazenamento online e plataformas nas quais esses materiais circulam sejam responsabilizados quando não desabilitarem o acesso a CSAM, mas apenas quando notificados oficialmente.
Só em 2022 o STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou que é dever das plataformas retirar conteúdo que viola direitos de crianças e adolescentes assim que forem comunicadas da existência da publicação, independentemente de ordem judicial. No entanto, a aplicação desse entendimento a outros casos ainda é um desafio.