A sucessão de secas e as mudanças climáticas transformaram o cenário da caatinga conhecido por um dos maiores personagens fictícios do sertão nordestino. Fabiano, escrito por Graciliano Ramos em “Vidas Secas”, se hoje morasse na comunidade de Jurema, no município de Chorrochó (BA), não esperaria mais o verde trazido pela chuva.
Damázeio Francisco do Nascimento, 85, nascido um ano depois do lançamento do livro, já não espera. “A mata que era caatinga não tem mais. Os paus morreram todos, as braúnas morreram todas”, diz.
O nome informal que dá para a nova vegetação da área onde mora é “tabuleiro”, uma terra mais seca, com flora pequena e rala, composta majoritariamente por galhos mortos —não os característicos galhos secos que florescem quando chove.
Damázeio mora na primeira região de clima árido identificada no Brasil, conforme estudo publicado pelo Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) e pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) no final do ano passado. Isso significa que, na cidade dele, a quantidade de água que evapora da superfície é maior do que a reposta pelas chuvas, causando um déficit hídrico.
O mesmo acontece nas cidades de Abaré, Macururé e, em partes, de Rodelas, Curaçá e Juazeiro, todas no norte da Bahia. No sul de Pernambuco, uma pequena região de Petrolina também se enquadra na nova classificação. O território com clima árido tem cerca de 5.700 km².
O estudo feito por Cemaden e Inpe considerou dados desde 1960, período em que a mudança, que é progressiva, pôde ser notada.
“Eu me lembro de quando eu tinha 5 anos. Nesse tempo chovia mais, tinha a caatinga e água para nós”, diz Damázeio. Agora, mesmo quando chove, segundo ele, as plantações não rendem como antes. “Feijão e milho não dá mais. Dá aquela chuvinha e aí o solo esquenta. Os solos são mais quentes e aí o legume não vai para frente.”
A física Ana Paula Cunha, que conduziu o estudo no Cemaden, confirma essa percepção: a passagem de semiárido para árido deixa a terra mais seca, danifica a vegetação natural e prejudica seu uso para atividades agrícolas.
O aumento da temperatura média é o ponto-chave da aridização, diz Cunha. Em regiões do semiárido onde a chuva já era escassa, afirma, o problema é que a temperatura maior faz com que a água do solo evapore mais rápido. Em alguns pontos, diz, chove até mais, mas a evaporação supera o volume de água precipitada.
“Está relacionado às mudanças climáticas antropogênicas, ou seja, resultado das emissões de gases de efeito estufa”, explica.
“Antigamente, quando a gente ouvia rádio, escutava dizer: ‘A temperatura está 20°C e alguma coisa’. Se passasse de 30°C, estava tudo lascado. Agora, já está indo para 40°C”, diz Israel da Cruz Oliveira, 54, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Chorrochó.
Ele anda pela comunidade de Jurema falando sobre as mudanças no local onde cresceu. “Cada ano vai morrendo uma espécie de planta, diminuindo… As abelhas também. Tem várias espécies de abelhas que a gente não conhece mais”, diz.
Para ele, fazem falta a braúna, uma das maiores árvores da caatinga, a imburana, a quixabeira, o umbuzeiro e até o mandacaru, característico da região, mas agora presente em apenas algumas partes da zona rural mais intocadas.
Até 2060, a caatinga pode perder 40% da biodiversidade por causa das mudanças climáticas, segundo estudo publicado no Journal of Ecology, feito por pesquisadores de São Paulo, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais e Goiás.
Mas não só a vegetação e os animais desaparecem da cidade de 10,5 mil habitantes. “Não tem como ficar”, diz Israel, que aponta a escassez de jovens na agricultura à medida que a comunidade se esvazia.
Todos os amigos da professora Suelani Cipriano, 27, saíram da área rural. Ela, mãe de um menino de 7 anos e uma menina de 1 ano, ficou.
“A temperatura não permite que eles brinquem da forma que eu brincava fora de casa. Seria uma irresponsabilidade se a mãe deixasse”, afirma. “No meu tempo, o benefício era a vegetação. Tudo verdinho, com sombra”, afirma, apesar de reconhecer que talvez, mesmo com as plantas verdes, os filhos preferissem o celular às brincadeiras de rua.
Quem fica, diz Israel, precisa se adaptar às novas condições. Para plantar, mesmo quando chove, irrigação é necessária, por exemplo.
Além disso os períodos de plantação e colheita são mais curtos devido ao calor e, em algumas épocas do ano, só é possível cultivar em uma estufa que protege as plantas do sol.
Entre os cerca 1.600 trabalhadores rurais filiados ao sindicato, contudo, menos da metade tem acesso às cisternas e à assistência técnica subsidiadas pelo poder público e executadas por ONGs.
A ONG Agendha (Assessoria e Gestão em Estudo da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia) é a única que atua na região do norte da Bahia chamada Vale de Itaparica, onde ficam Chorrochó, Macururé e Abaré.
A diretora da organização, Valda Aroucha, lamenta que o projeto não consiga ter maior abrangência. “Estamos em um território com mais de 7.000 famílias agrícolas e damos assistência técnica a 1.080.”
Segundo Valda, o semiárido —agora árido em partes— muitas vezes não recebe a atenção necessária no debate climático por sempre ter convivido com a estiagem e as altas temperaturas.
“Mas a gente não pode pensar assim, porque senão vai haver injustiça climática. Ou seja, aqueles que mais sofrem, porque estão sofridos, porque estão acostumados, não receberão as devidas políticas públicas e iniciativas”, afirma.
Para ela, o alerta sobre os impactos das mudanças climáticas no semiárido deve vir acompanhado de soluções para que as famílias sertanejas consigam permanecer em suas casas com qualidade de vida.
“Eu sou otimista, até por ser catingueira. Sou filha de agricultores. Quando ajudei a fundar a Agendha, foi no sentido de trabalhar por essas pessoas, porque vi meu pai migrar por conta da seca na minha infância. Então, trabalhar resistência e persistência é fundamental”, afirma a diretora da ONG, que diz ver também mudanças positivas.
“Aqui não é mais aquilo de ‘Vidas Secas’ e ‘Os Sertões’”, fala, se referindo ao avanço das políticas públicas, mesmo que incipientes e contra um clima cada vez pior.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.