A casa finalmente silencia. Ao meu lado, o respirar despreocupado do corpo que dorme, imóvel, a não ser pelo peito que sobe e desce ritmado. No outro quarto, as crianças rodopiam em silêncio, performando o balé do sono infantil que faz da cama tatame.
No escuro, uma luz azulada ilumina apenas um rosto ainda acordado. O meu.
O relógio marca 1h30. Sei porque vejo os números no canto superior direito da tela do telefone. Meus olhos ardem e meu corpo dói, cansado, desconfortável nesta posição que não é inteiramente horizontal nem completamente vertical.
Não lembro a última vez que dormi mais de cinco horas seguidas. O sono frequentemente interrompido por um ou outro clamor pelo meu nome antissocial: mamãaaaae. Um coração aflito, uma garganta com sede, uma coberta que saiu do lugar.
Mesmo assim, sigo acordada. Meus dedos insistindo em deslizar pela tela, ávidos, como se não pertencessem a este corpo exausto.
Pulo de um aplicativo de compras para uma rede social. Um reels, um stories, uma receita em velocidade dois, uma maquiagem se revelando em takes rápidos como num passe de mágica. Sem som, que é para preservar o silêncio da casa que dorme.
Sei que também preciso dormir, mas a vontade de seguir neste momento que é só meu ultrapassa o cansaço. No meio do caminho digital que meus dedos percorrem, um post sobre a importância do sono. E o cansaço se mistura à culpa. Por não estar cuidando de mim, por não estar usando este tempo para algo minimamente útil. Nem os vídeos que passeiam pela tela tem serventia. Nada que faça valer a pena essa pena de não dormir.
“Larga o telefone e vai dormir”, ouço o corpo ao meu lado murmurar, se virando em sentido contrário ao meu, incomodado com a luz que emana do telefone. Mas sigo scrollando.
Por muito tempo achei que eu fosse a única louca, maníaca, viciada digital, incapaz da mais primitiva das atividades: dormir. Mas parece que não estou sozinha. O fenômeno tem até nome: “revenge bedtime procrastination”, algo como “procrastinação de vingança da hora de dormir”. Uma vingança silenciosa contra a rotina que nos engole.
O termo aparentemente surgiu na China, quando trabalhadores da escala 996 (de 9h às 21h, seis dias por semana) relataram o estranho hábito de adiarem o sono para recuperar um sensação de controle diante de uma rotina de trabalho exaustiva.
Eu dei de cara com o conceito ironicamente numa dessas madrugadas. A chamada do post dizia: por que mães cansadas sacrificam o sono pelas redes sociais?
A carapuça serviu, rara ocasião em que o algoritmo me servia algo de útil —e tão pessoal que me senti numa espécie de ‘Show de Truman’. Cliquei no artigo e rapidamente me dei conta da banalidade do meu vício.
O paradoxo da insônia voluntária parece ter sido apropriado por outra categoria de trabalhadoras exaustas: mães. Essa classe não remunerada que trabalha em escala 247 (24 horas por dia, sete dias da semana) em condições muitas vezes insalubres.
E diante do cansaço, da entrega, dos muitos pratos que rodopiam no ar e do amor que nos coloca em último lugar na fila do cuidado, nos resta o silencio da madrugada e a anestesia da distração. Uma vingança mequetrefe contra a rotina que exaure, contra o sistema que não ajuda, contra a desigualdade que obriga a mulher a acumular papéis. Uma vingança que era para ser nossa, mas que cobra seu preço.
No silêncio da casa que dorme, essa mãe tenta, como pode, lembrar que também é alguém. Mesmo que no dia seguinte acorde ainda mais esquecida de si.
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