Ao ouvir os primeiros pingos no telhado, Célia Cristina de Souza, 53, fica apreensiva e já se prepara com o rodo. Uma operação quase inútil, já que a água, dependendo da intensidade da chuva, sobe pelo ralo da cozinha ou pela base do vaso sanitário. “Eu só vivo aqui na água, quando chove eu até choro.”
O problema da dona de casa é comum na Vila Pantanal, favela no bairro do Saboó, na zona noroeste de Santos, casa de 2.095 moradores, segundo a prefeitura. Após chuvas na tarde da última quarta-feira (8) em diversos pontos da Baixada Santista, Célia havia passado a madrugada seguinte tirando água do banheiro e esperando que ela baixasse.
Além da chuva, a umidade e o impacto de construções como a de uma casa vizinha à dela fizeram sua residência rachar do piso ao teto em diferentes partes, o que já fez armários da cozinha caírem. “Não tenho condições de construir, só entreguei na mão de Deus.” O solo também já afundou em um ponto da cozinha.
Como a área está assentada em uma região de mangue, a pressão das construções, associada aos alagamentos constantes, aumenta os riscos de acidentes.
Foi o que aconteceu na casa da avó de Juliana do Nascimento, 34. Parte do quarto dela e da cozinha, que também tem uma área de televisão, afundaram após o uso de bate-estacas em uma construção nos fundos, onde foi erguida uma casa de três andares.
Com o afundamento, a parede rachou e o telhado perdeu caimento, fazendo com que a água da chuva empoce, o que exige uma operação com baldes para recolher o que vaza para dentro do cômodo. Juliana e a irmã também precisam ficar atentas para o caso de a avó, com mobilidade reduzida, ir até a cozinha.
“Agora estou meio apertada. Tô tentando estabilizar minhas contas e eu mesma vou dar um jeito. Jogar um aterro ali onde está cedido e trocar os madeirites”, diz Juliana, que se divide entre os cuidados com a avó e o trabalho como atendente e operadora de caixa em um posto de gasolina na cidade.
Como parte das casas no local, uma área de ocupação informal que vem crescendo desde os anos 1990, não têm coleta de esgoto, há ligações irregulares em uma rede pluvial construída pela prefeitura. Criticado por moradores, o sistema frequentemente entope e devolve água e esgoto.
A prefeitura afirma que as ligações irregulares de esgoto são de responsabilidade da Sabesp e que não tem competência legal para fiscalizar. Já a companhia diz que está pedindo autorização para regularizar o serviço de coleta na área.
“A empresa está em tratativas com a prefeitura para obter a autorização necessária à regularização das ocupações na Vila Pantanal, com o objetivo de ampliar a infraestrutura de saneamento nos imóveis localizados em áreas informais.”
Em um imbróglio que remonta a 1998 com a prefeitura, sobrou para os próprios moradores a briga por esgotamento sanitário. Uma das pessoas que abraçou o tema foi Ana Bernarda dos Santos, 64, liderança comunitária local, presidente e fundadora da Sociedade de Melhoramentos da Vila Pantanal.
“O tema já está na Justiça há muitos anos, há dois anos há uma determinação de multa e o município fica recorrendo. Nós sempre fazemos conferências e teremos uma agora em janeiro para discutir com Ministério Público, Cohab [Santista], prefeitura e Sabesp para discutir o que será feito.”
Diagnosticada com esclerose múltipla, ela usa uma cadeira motorizada para transitar pelo bairro, tarefa inviabilizada pelos alagamentos quando chove. Histórias como a de Célia e Juliana, diz ela, são comuns. A descrença é grande, mas Ana Bernarda aposta na mobilização local para resolver os problemas da vila, como ela faz na ponte do bairro com serviços de saúde e de assistência social.
O tema foi parar na Justiça em 2018 por meio de uma ação civil pública, mas segue sem resolução. A prefeitura foi condenada em abril do ano passado a pagar uma multa de R$ 150 mil por não ter tomado providências para a urbanização e a regularização da área, mas tem recorrido e apelou ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), que analisa o caso. Também há uma multa diária de R$ 2 mil, com teto de R$ 500 mil, para cada dia sem o cumprimento da medida.
“Na prática, a prefeitura irá pagar as multas. Ao fim e ao cabo, é dinheiro público que poderia ser usado em obras públicas, inclusive a da [Vila] Pantanal, e não cumprirá a obrigação a que foi condenada, a urbanização”, afirma a advogada Gabriela Ortega, que acompanha o caso.
A apresentação de um plano de urbanização deve ser feita até o fim de janeiro. A gestão Rogério Santos (Republicanos) não respondeu se vai cumprir o prazo, mas disse que busca recursos para financiar as obras na vila. Afirmou que inscreveu a Vila Pantanal, assim como a Vila Alemoa e o Jardim São Manoel, áreas com situação parecida de alagamentos e falta de esgotamento, no programa Periferia Viva, do Ministério das Cidades.
Com investimento previsto de R$ 178 milhões para infraestrutura urbana, entre outras áreas, o Jardim São Manoel foi o local selecionado. “No que diz respeito à Zeis 1 – Vila Pantanal e Zeis 1 – Vila Alemoa, como dito, ambas as propostas foram habilitadas pelo Ministério das Cidades, entretanto, não foram selecionadas, considerando os recursos disponíveis e critérios de seleção”, disse, em nota, a prefeitura.
Segundo o professor de história Jonathan Gomes, 29, morador do São Manoel, a inscrição do bairro foi resultado de anos de luta contra despejos e remoções. “Foi criada uma associação para mecanismo de luta e contraponto, pelo direito à permanência, mas não só por isso, mas também moradia, saneamento básico, regularização fundiária e urbanização.”
Em comunicado, a Associação dos Moradores da Rua João Carlos da Silva e Adjacências do Bairro São Manoel afirma que a inclusão no programa é mais do que uma obra e que foi um caminho encontrado para continuar cobrando do poder público local a regularização fundiária e de infraestrutura.
A proposta de financiamento para o Jardim São Manoel, segundo a prefeitura, está em análise pela Secretaria do Tesouro Nacional. Já os moradores aguardam pelo início das audiências do programa, que devem ter a participação de moradores para discutir as intervenções.