O ano começou pegado para a minha irmã Lúcia. Sua loja de brinquedos, numa rua bacana da Vila Romana, em São Paulo, voltou a fechar no vermelho, o que já virava “default” em 2024. O que não se esperava, talvez porque ninguém quisesse pensar no assunto, era que um segundo infarto do miocárdio pudesse acontecer, e logo na alvorada de 2025. E ele veio, como em 2018, numa noite de sábado, a de 11 de janeiro passado.
Nenhuma advertência sobre os perigos do cigarro nestes últimos seis anos foi por ela considerada, fosse a dos médicos, fosse a de irmãos e sobrinhos, sempre mais lenientes com o hábito; mesmo o relato da cena de seu ex-marido a implorar, como praticamente último ato de vida, um cigarro, parece tê-la sensibilizado.
Foi em 2004, e eu fui testemunha ocular: Edgard mal tinha forças para sustentar o cigarro –acho que ele preferia Chanceller, “o fino que satisfaz”– naquela cama de hospital, concessão que lhe foi feita pelo médico à maneira de um agente penitenciário naqueles filmes em que o condenado à pena fatal encara seus últimos minutos. Edgard tremia copiosamente, mas deve ter conseguido tragar. Espero que sim.
Numa definição ligeira, o cigarro é o fim da picada, como sabem tantas gerações que sucederam à da minha irmã, hoje com 66 anos. Ela já leva cinco décadas ininterruptas de tabagismo, vício que na sua época de adoção era tão glamourizado pelo cinema, pela TV e pela vida cotidiana.
É improvável que no fim daqueles anos 1960 se falasse que a nicotina é a substância mais viciante de que se tem notícia, ou uma das mais, como tão sistematicamente lembra o médico Drauzio Varella aqui mesmo nesta Folha. Que causa mais dependência do que o crack.
Quando cito Drauzio pela enésima vez para Lúcia, ela faz um muxoxo, aquiesce um tanto mecanicamente, chega a replicar que Fernando, irmão do médico, morreu precocemente aos 44 anos de câncer no pulmão. E, talvez por já estar bem mais avançada em anos do que Fernando ao morrer, me dá um perdido e desaparece para mais um cigarrinho.
No livro “O Imperador de Todos os Males – uma Biografia do Câncer”, o oncologista e grande escritor Siddhartha Mukherjee conta a história, entre tantas outras, dos esforços de relações públicas e de propaganda da indústria do cigarro em negar a ciência que vinculava o produto ao câncer de pulmão; e recorda o despejo de “dezenas, depois centenas, de milhões de dólares em campanhas publicitárias no pós-guerra”.
O autor escreve que a propaganda passava a se sofisticar, e marcas de cigarro eram desenhadas para categorias profissionais e grupos sociais distintos. “Mais médicos fumam Camels”, mostrava um anúncio de quarta capa da revista Life em 1952, um dos coligidos por Siddhartha.
Quando Lúcia voltou finalmente da UTI, ficamos sabendo que sua capacidade cardíaca se reduziu em 50%. Houve entupimento da mesma artéria antes comprometida e na qual havia sido implantado em 2018 um “stent”. Segundo os médicos, essa situação tornou a batalha pela vida após o infarto de sábado bastante mais intensa.
Nem isso, penso quase sem melancolia, vai ser suficiente para desviá-la daqui a alguns dias de mais um cigarrinho.
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