Sou meio desligado. Daqueles que abrem o WhatsApp para escrever para alguém e esquecem o que estava fazendo antes de começar a mensagem. Que não faz a menor ideia do que vestiu ontem e só aprende o nome de alguém depois ouvir pela terceira vez. Isso quando não para de perguntar, porque já está pegando mal não aprender nunca e ficam sem saber mesmo.
Quando se junta essa tendência à distração com a deficiência visual, a confusão é exponencial. Isso porque, ao menos para mim, o que os olhos não veem, a mente provavelmente esquece.
Nunca lembro onde deixei o celular, as chaves e, sem ver, tenho que passar a mão em todos os móveis da casa e vasculhar em todas as mochilas e bolsas até descobrir onde foi que eu larguei. Também estou sempre à procura de minha bengala, casacos, chinelos e sapatos.
Sapatos, aliás, são uma história à parte. Não foi só uma vez que saí misturando itens de pares diferentes: marrom com azul, branco com preto, esportivo com social. Em benefício próprio, pensei até em lançar moda e me rebelar contra essa obrigação limitante de ter de calçar a mesma coisa nos dois pés, mas logo fui convencido da pouca chance de sucesso de minha empreitada.
A tendência de cometer pequenos deslizes por onde passo é tão forte que estou sempre preparado para receber puxões de orelha por alguma trapalhada. Igual quando uma noite achei uma boa ideia deixar um montinho de roupa suja no armário, para não ter de levar até a máquina de lavar antes de dormir. Minha companheira não teria se incomodado, desde que eu não tivesse esquecido a prova do crime por mais de uma semana.
Quando ela me chama de longe e diz “deixa eu te mostrar uma coisa”, já sei, aprontei uma das minhas. Estou sempre pronto a confessar tudo e prometer ficar mais atento dali em diante.
Foi assim em uma viagem com um colega de trabalho. Um dia de manhã, ele reclamou: “Filipe, você fez xixi no bidê”. Não lembrava, mas naturalmente a culpa era minha. Afinal, ele enxergava, a privada ficava ao lado do bidê, eu estava chegando toda noite muito cansado (mas absolutamente sóbrio, vale mencionar). Era plausível que estivesse pensando no primeiro movimento de alguma sonata para piano e não me atentado ao barulhinho diferente do xixi na privada errada.
Prometi que daria um jeito na situação. Fui à recepção e só consegui dizer que havia acontecido um acidente no banheiro e precisava de uma limpeza extra, pois contar a verdade inteira seria humilhação demais.
Enquanto trabalhava no quarto, eu sentia o cheiro de urina me perseguir acusatório, a me castigar lembrando a todo instante que eu era um mijão sem pontaria. A penitência acontecia mesmo com a porta do banheiro fechada e longe demais para que o odor chegasse até mim.
Veio a limpeza. Fiquei no meu canto encolhido exercitando minha habilidade de me tornar invisível enquanto faziam seu trabalho.
Mais tarde, quando voltei ao banheiro, estava lá o bidê cheio de água novamente. Passo a mão por cima dele e sinto um toque frio e suave, uma goteira fina e constante.
A água que, milagrosamente, provou minha inocência na qual nem eu acreditava.
Isso não muda o fato de que, da próxima vez em que algo estiver, metaforicamente falando, fora do penico, haverá uma chance considerável de ser culpa minha outra vez. Mas ao menos vou esperar uma apuração abrangente e um julgamento imparcial antes de me declarar culpado.
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