Quando me separei, há três anos, eu não sofri. Foram dez anos de casamento, uma filha pequena e eu ainda o amava. Mas nas primeiras semanas, lambuzada em hipomania e exibindo uma euforia descabida, vingativa e vexatória, eu não conseguia sentir muita coisa.
Pouquíssimos meses depois, me apaixonei novamente e de uma forma até então desconhecida. Eu me sentia amando com todas as minhas idades, incluindo aquelas que eu ainda teria um dia. Eu via nessa relação uma possibilidade de compreensão e transformação para minhas repetições e defesas infantis. Eu sentia que a maturidade do meu corpo -e o desejo imenso que ela trazia-, tinha encontrado, enfim, materialidade e apaziguamento. E imaginava que, ao lado dele, não seria tão insuportável perder meus pais e perder a juventude que ainda pretendo sustentar por pelo menos mais uma década e meia.
E então, depois de dois anos, essa relação também terminou. Na terapia, tentando entender por que eu não estava aos prantos, me lembrei da morte do meu avô. Ele me amava tanto que minha avó e meus tios, enciumados, acabavam me maltratando de leve, rindo de mim. Até a minha mãe se sentia traída pelo pai. Meu avô se aposentou no ano em que eu nasci e dedicou a mim, com uma devoção que segui buscando por toda a vida e nunca mais encontrei, seus últimos 15 anos. Ele chorava escondido quando eu me machucava e sempre enfiava na minha lancheira todas as coisas gostosas da casa, afirmando ao resto da família que elas tinham acabado.
“O que acontece se você sofrer?”, perguntou meu analista. E eu respondi que passei mais de vinte anos sem vomitar. Eu podia ter uma intoxicação alimentar, febre, desmaiar, mas não vomitava. Porque minha mente dizia “se você começar, nunca mais vai parar, não deixa sair”. Até que em 2010 saiu um jato de risoto de limão siciliano no meio da alameda Jaú. E eu não morri (e foi a glória).
Eu estava deitada no chão do quarto de brinquedos da minha filha, vendo-a desenhar uma girafa corcunda, quando uma dor imensa chegou. E eu sabia que ela viria trazendo seus 745 vagões. Aquele som assustador, meio uivo, meio sopro, que ouvimos dentro de uma estação de metrô. Os rostos nas janelas, desfigurados pela agilidade. Túnel, subterrâneo, escuro. Pessoas perdidas, apressadas, catatônicas, exaustas, sendo levadas pela massa. E alguns mais deprimidos encarando o buraco.
Acho que era maio do ano passado quando eu comecei a chorar e nunca mais parei. Chorei o fim dos dois relacionamentos de uma só vez e algumas noites senti tanta dor física, medo e solidão que transformei minha cama em uma suruba ecumênica, dormindo agarrada a santos de cerâmica, quartzos rosas e guias de candomblé.
Eu vou morrer, eu pensava, mas vou deixar pra morrer depois que minha filha dormir e amanhã, antes dela acordar, eu dou meu jeito de viver de novo. O mais triste era saber que eu tinha sido abandonada por uma coisa muito preciosa que eu carreguei a vida toda, mas qual era o nome? Maravilhamento? Fiz velórios infinitos para palavras como crença, encanto e “verdadeiro”.
Todas as manhãs de 2024 eu acordei pensando como eu faria pra calçar sapatos, lavar o cabelo, descongelar a carne, dar seta pra direita, dar seta pra esquerda, segurar meus braços dependurados a partir do ombro. Mas na última noite do ano eu sonhei que descia escadas, entrava em quartos, pegava trens, até chegar em uma cama coberta de asfalto, depois terra, depois madeira. E quebrar, escavar e berrar que eu precisava me despedir do meu avô. Então ele apareceu e eu acordei. Agora é 2025.
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