Na semana pós-Natal, enquanto arrumava a bagunça, pensei nas facilidades atuais para organizar festas: lojas sempre abertas em qualquer dia. Mas uma sombra compareceu: como deve ter sido o Natal dos trabalhadores destes estabelecimentos?
Meu pensamento logo foi para a polêmica da jornada de trabalho 10×1 envolvendo uma grande rede de supermercados em Porto Alegre. O projeto da deputada Erika Hilton pega esse tema na veia, pois a jornada exaustiva cerceia a vida pessoal, familiar e coletiva dos trabalhadores.
Minha memória foi para a Bíblia, para o mandamento de descanso, que valia para todos —pessoas, animais e até para a terra. Sim, descanso não era concessão, era obrigação! Claro, houve exageros: Jesus foi condenado por curar no sábado. Sua resposta foi genial para recolocar as prioridades: “O sábado foi feito para o ser humano, e não o ser humano para o sábado”.
Mas falando em prioridades…. Ter de trabalhar 6 ou 10 dias para descansar 1 ainda pode ser visto como dignificante da condição humana? E folgar quase nunca aos domingos? O descanso individualizado em um dia qualquer ameaça nossa condição básica de seres gregários, que necessitam reunir família e amigos, e também praticar atividades coletivas como cultos e esportes. Freud definia a saúde mental como a capacidade de amar e trabalhar. Ou isso será para poucos?
Sou filha e neta de empresários, o trabalho sempre foi muito valorizado na minha família protestante. Mas havia uma prioridade maior: cultuar a Deus no domingo. A semana caminhava nessa direção, a sexta e o sábado estavam recheados de preparativos. Domingo todos iam à igreja. Depois o almoço em família, a boa soneca, e na tarde se visitava outras famílias —de preferência as necessitadas de cuidado.
Mas também no meio cristão acontecem exageros: o domingo, dia de descanso do Senhor, se transformou em dia de ativismo do humano. O pastor sueco Tomas Sjödin, depois de seu burnout, foi estudar a forma de judeus e cristãos viverem o dia sagrado. No seu livro, cujo título poderia ser traduzido como “Por que descanso é nossa salvação”, conta que este estudo mudou sua perspectiva de vida: “É sábio colocar o descanso no seu devido lugar, ao qual é destinado: ao primeiro lugar. Descansar significa deixar-se transformar”.
Deixar-se transformar: ao resgatar nossa identidade mais profunda, doada na voz passiva, o descanso semanal dá novo ritmo a toda vida. Essa não está baseada no trabalho, mas no valor da pessoa como imagem do divino.
A dessacralização do descanso levou ao desrespeito da vida como um todo. Esquecendo que nascemos na beira do repouso divino, reprimimos nosso anseio por dimensões mais profundas, tanto no descanso como no trabalho.
Lembro de uma paciente pertencente a uma igreja que levava muito a sério a sacralidade do sábado. Organizava seus dias para ter tudo pronto ao por do sol de sexta-feira, e passava muito bem o final de semana!
Na minha clínica, tenho afinado o ouvido para os relatos sobre o fim de semana, e percebido que muitos conflitos familiares explodem pelo esquecimento do descanso. E noto o grande contraste —para melhor— quando os pacientes resgatam em suas raízes a finalidade última do dia de descanso. Deixam-se transformar em suas relações afetivas, sexuais, devocionais, coletivas.
Deixo-me transformar pelo início do poema de Armindo Trevisan: “Quem somos nós, criaturas nascidas à beira do teu repouso?/ Feitos para Ti, / em Ti nosso coração / possui seu ponto de apoio / para levantar o mundo.” Sacralizar o descanso não é fixar modelos do passado. O convite é para, em cada tempo, criar formas de amar e trabalhar apoiando o coração na eternidade.