Arlei Lopes Batista, 48, encontrou guarida numa igreja evangélica inclusiva após décadas numa denominação tradicional, que via a homossexualidade como pecado. Durante esse período, foi, inclusive, palestrante em defesa da chamada “cura gay”.
Em depoimento à Folha, ele fala sobre a descoberta de um evangelicalismo que não discrimina a comunidade LGBTQIA+.
Durante parte da infância, fiquei entre a Igreja Católica, porque morava com os meus avós. Fiz a primeira comunhão, a crisma.
Meus pais eram empresários de parques de diversões. Fui morar com eles por volta dos 10 anos. Minha mãe faleceu quando eu tinha 12. Aí começa todo um processo de mudança na minha vida.
Saio [de casa] por conta de violência familiar [da parte do pai]. Vou para a casa de uma prima. A filha dela era da igreja onde fiquei por quase 30 anos. O pastor acabou me adotando. Chego nessa família pastoral com uns 14 anos. Ali construí minha base bíblica. Só que é uma herança que depois me custou muito.
Eu já tinha vivenciado [minha homossexualidade]. Todos [da igreja] sabiam. O discurso era de que era errado e tal, era pecado. Eu tinha que renunciar à homossexualidade. Fazia oração, jejum.
Lembro que, se era atraído por alguém na rua, me martirizava por conta do desejo. Tinha que sublimar. Foi um período de muita angústia. Batia na minha cabeça quando ia dormir. Eu achava que ia ficar louco, né?
Estava muito depressivo, ia me jogar na frente do ônibus. Chorei e disse: “Deus, se o Senhor existe mesmo, me ajuda”. Depois de alguns minutos, senti como se algo estivesse empurrando aquela tristeza para fora de mim.
Chego na igreja e acabo falando mais das minhas dores. Ali tenho um lugar de acolhimento, uma comunidade que me ouve. Em nenhum momento eles forçaram a algum processo de reorientação sexual.
Tive algumas relações sexuais [com homens] nessa época, todas confessadas ao pastor. Era um processo de alívio para aquele sentimento de culpa, e o barco continuava.
Fui tendo acesso a livros de pessoas que renunciaram à homossexualidade e construindo um viés de renúncia. Nessa fase, conheço uma moça da igreja. Ficamos 22 anos casados e adotamos três filhas —não porque não podíamos ter, foi por opção mesmo.
Nunca me vi como bissexual. Entendo hoje, olhando para trás, que a amizade, o companheirismo e o toque em si faziam com que eu tivesse as relações sexuais [com a esposa]. Sempre me vi como homossexual, mas que renunciava à sua sexualidade por conta da igreja.
Nisso fui crescendo na igreja, me tornei obreiro, depois presbítero, depois pastor.
No meio-tempo, ainda tive o que nós chamávamos de quedas. Não deixava de ser adultério, porque eu estava casado. Só que nunca foi escondido. Ela sempre se colocou nesse papel de “vou te ajudar a se libertar”.
Na leitura fundamentalista [da Bíblia] que nós tínhamos, era pecado e não tinha o que fazer. Então eu tinha que matar a minha carne, levar a minha sexualidade para a cruz e não vivê-la da forma que eu nasci para viver.
Encontrei várias pessoas que também estavam tentando renunciar à sexualidade. Criei um grupo na internet, de amor, aceitação e perdão. A gente passou de umas cinco pessoas para virar mais de 700.
Por dez anos, fiz parte do Exodus Brasil [rede evangélica que defendia ser possível a “cura gay“].
Tinha grupo que colocava os meninos em como se fossem casas de recuperação. No meu ministério, não trabalhamos com esse fundamentalismo tão opressor. De certa forma, o que eu fazia era mostrar a graça de Deus para meninos e meninas que queriam renunciar à sexualidade por conta da fé. Era uma mistura de psicanálise e teologia.
Eu me tornei palestrante do Exodus. O primeiro seminário de sexualidade da igreja do Silas Malafaia fui eu quem fiz. Minha ex-esposa estava até junto, ela e nossa filhinha adotiva, que devia ter um ano e pouquinho.
Até o dia em que, no aeroporto de Viracopos, eu estava tomando meu café e veio uma pessoa. No fim daquela conversa, me deu o número do telefone. Passei a gostar afetivamente dele. Aquilo ficou no meu coração. Não consegui mais ter relação sexual com minha esposa nem ministrar sobre sexualidade. Entrei em crise.
O casamento parou ali, mas a gente empurrou por um tempo. Ficamos quase quatro anos sem ter nenhuma relação. Na crise, encontrei a igreja inclusiva [que não recrimina a comunidade LGBTQIA+] e passei a sentir a presença de Deus naquele lugar.
Entra uma nova crise. Peraí, como que uma igreja evangélica tem público gay? Tudo o que vivi não era verdade?
Fui para uma última reunião do Exodus. Pergunto o que os líderes tinham para refutar a teologia afirmativa. Para minha surpresa, nenhum deles tinha, de forma robusta, conhecimento sobre ela.
Essa teologia trata a leitura bíblica de forma histórico-crítica. Quando o texto bíblico fala “não se deite um homem com outro”, estou olhando para ele de forma literal. A teologia afirmativa reconhece o fator histórico, considera em que época aquilo foi escrito. Se eu fizer uma leitura literal da Bíblia, então vou ser a favor da escravidão, por exemplo.
Voltei querendo conhecer mais profundamente a teologia afirmativa. Só que me decepcionei com a igreja que eu estava conhecendo naquele momento. Pastores casados deram em cima e, para mim, foi um choque. Era uma questão mais moral, tipo, se já está casado, por que precisa de uma outra pessoa?
Fui para Curitiba com uma psicóloga que fazia “cura gay“. Ela tentou fazer uma modelagem. Eu tinha que andar com o marido dela, tinha que capinar, porque ele estava fazendo horta. Meu pai [o pastor] pagava para eu estar lá.
Eu não podia nem usar a internet. Fiquei dez dias e fui embora. Voltei para o casamento.
O que me fez deixar a igreja fundamentalista foi ela [a ex]. Disse assim: “O que estou fazendo? Não posso acabar com a vida dela”. Ela era uma pessoa jovem que poderia casar novamente.
Fui indo numa outra, onde me fortaleci em relação à afirmação [da homossexualidade]. Aí o conheci [Daniel, seu marido]. Depois de um tempo, a gente foi para a Betesda, uma igreja heteronormativa que virou afirmativa.
Fomos neste ano para a Igreja Batista Soul Livre porque vimos a necessidade de um auxílio maior para a nossa comunidade LGBTQIA+, para ajudar essas pessoas a continuar com fé em Deus de uma forma saudável, sem fundamentalismo.
Não acredito mais nesse Deus punitivo. Jesus Cristo morreu para salvar o mundo, não para condenar.
Entenda a série
A Folha questionou um evangélico, um católico, um muçulmano, uma umbandista e uma hare krishna sobre os motivos que os levaram a trocar de crença. As respostas, em formato de depoimento pessoal, serão publicadas a partir desta quinta (26), na série Convertidos.