É sempre necessário algum pé atrás antes de achar que os grupos de WhatsApp dos quais a gente participa podem ser tomados como uma representação do “Zeitgeist”, o famigerado espírito do nosso tempo. Sabe como é, viés de amostragem e tudo o mais. Ainda assim, não deixa de ser significativo que, em rápida sequência, tenham aparecido por aqui as seguintes mensagens.
“Sei lá, mano, o mundo tá acabando, né.”
Frase logo respondida com esta: “Na real o que tá acabando é a vida humana“.
Aposto que você leu ou ouviu muitas frases desse tipo nos últimos anos, e talvez vindas principalmente da boca ou do teclado de gente na casa dos 20/30 anos (é o caso dos exemplos acima).
É, eu sei, o noticiário não ajuda. E, em especial, boa parte do noticiário que eu e meus colegas produzimos nas últimas décadas, cobrindo as múltiplas crises ambientais, em especial as do clima e da perda da biodiversidade, que são ameaças um bocado reais para o bem-estar desta e das próximas gerações. (Sem falar, é claro, no das demais formas de vida, levadas de roldão pela imprevidência e ganância demasiado humanas.)
Reconhecer a realidade e seriedade dessas crises múltiplas, porém, não equivale a entregar os pontos e achar que o mundo, ou mesmo a vida humana, estão “acabando”, a despeito do que dizem meus amigos catastrofistas. Sugiro que essa seja a nossa principal resolução de Ano Novo: perceber que não se trata de um tudo ou nada.
E, para isso, invoco a sabedoria de Gandalf, o Cinzento.
OK, quase posso ouvir o leve farfalhar dos olhos dos leitores, revirando-se diante de mais uma citação gratuita de “O Senhor dos Anéis” nesta coluna. Compreendo a reação, mas desconfio que um dos sinais da maturidade é voltar a levar contos de fadas a sério. E poucos contos de fadas do século 20 enxergaram com tanta clareza o buraco em que a civilização industrial nos enfiou quanto o livro do britânico J.R.R. Tolkien.
Em “O Senhor dos Anéis”, Gandalf, o anjo encarnado no corpo grisalho e barbudo de um mago, sabe muito bem que seus esforços para salvar os povos da Terra-média podem fracassar completamente. O mundo pode acabar sendo engolfado por um pesadelo totalitário que se deleita em criar desertos.
Contudo, Gandalf também sabe que mesmo esse tipo de força sombria não é suficiente para acabar com a possibilidade de que algo sobreviva do outro lado dela.
“Não é meu o domínio de nenhum reino, grande ou pequeno”, diz ele (na tradução de Ronald Kyrmse). “Mas todas as coisas dignas que estão em perigo do modo que o mundo está, essas são minha incumbência. E, de minha parte, não hei de falhar totalmente em minha tarefa se por esta noite passar alguma coisa que ainda possa crescer bela ou dar frutos e voltar a florir nos dias vindouros.”
Essa, no fundo, é a verdadeira briga. Cada décimo de grau Celsius de aquecimento global que for evitado, cada espécie de bicho ou planta arrancada da beira da extinção, cada comunidade que levar uma vida decente são sementes de um futuro que será um pouco menos semelhante a Mordor.
Nada disso, é claro, deveria ser desculpa para abandonar o esforço de enfrentar as origens do problema. Teremos um século assustador pela frente. Mas a biosfera e a humanidade são mais fortes do que o desespero insiste em nos cochichar. Feliz Ano-Novo!
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