Publicado na véspera do Natal, na terça-feira (24), o decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que limita o uso da força policial em todo o país virou o alvo do novo embate entre o governo e parlamentares da oposição. Alguns governadores também já se manifestaram contra o decreto. Além de ações no Supremo Tribunal Federal (STF), o texto desenhado pelo Ministério da Justiça deve ser alvo de medidas por parte do Congresso Nacional.
Para o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), o governo Lula erra ao propor mudanças sem a devida discussão com os governadores. Ele indicou que pretende questionar o texto do decreto no STF. Pela Constituição, é competência dos governos estaduais a gestão da segurança pública.
“Decreto sem diálogo, publicado na calada da noite, sem amparo legal e numa clara invasão de competência. Agora, para usar arma de fogo, as polícias estaduais terão que pedir licença aos burocratas de plantão em Brasília. Isso é uma vergonha. Espero que o Congresso Nacional se levante e casse esse decreto absurdo. Nós, do Rio, vamos entrar imediatamente com uma ação no STF!”, protestou Castro.
O texto do governo Lula condiciona a implementação das medidas para que os governos estaduais tenham acesso aos repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Os repasses são feitos por meio dos recursos recebidos pelas loterias federais. O montante reservado para o fundo deve ser de aproximadamente R$ 1,1 bilhão em 2025.
Os recursos das transferências podem ser utilizados para o combate ao crime organizado, a defesa patrimonial, a redução de mortes violentas intencionais, a valorização da qualidade de vida do profissional da segurança pública e o enfrentamento à violência contra a mulher.
Para o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), a medida é uma “clara chantagem do governo federal”.
“O decreto impõe aos estados que, caso não sigam as diretrizes do governo do PT para a segurança pública, perderão acesso aos fundos de segurança e penitenciário. Trata-se de uma chantagem explícita contra os estados, que acaba favorecendo a criminalidade”, disse.
“Ao que nos parece, a questão financeira é o principal objetivo desse tipo de investida federal. O fim pretendido, mas não informado, [também] é intervir na segurança pública nos estados, com a destinação de verbas federais apenas aos que adotarem o pretendido padrão. A tendência é piorar muito o atual cenário da segurança pública”, avalia o advogado e coronel da reserva da Polícia Militar do Paraná Alex Erno Breunig.
Bancada da segurança quer derrubar o decreto no Congresso
Em outra frente, parlamentares da Frente Parlamentar da Segurança Pública discutem a apresentação de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para sustar o texto do governo Lula. A medida precisa ser aprovada na Câmara e no Senado e a tramitação só deve começar em fevereiro de 2025, após o fim do recesso no Legislativo.
Quem articula a apresentação do PDL é o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS). Segundo ele, o decreto assinado pelo presidente Lula representa uma grave ameaça à segurança pública e favorece a criminalidade.
“Ao limitar a atuação policial, o governo Lula coloca em risco a vida de milhões de brasileiros, enfraquecendo quem deveria proteger a população e fortalecendo a bandidagem”, criticou o deputado.
Ainda de acordo com Nogueira, o PDL vai garantir a autonomia das forças policiais e preservar a capacidade dos estados no combate à criminalidade. “Essa [decreto] é mais um exemplo de como o atual governo está mais preocupado em combater a polícia do que o crime. Não podemos aceitar isso”, afirmou o parlamentar.
Integrantes da bancada da segurança defendem que o tema seja levado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ainda nesta quinta-feira (26) na reunião de líderes. Lira suspendeu o recesso parlamentar e retornou a Brasília com objetivo de discutir a eleição, em fevereiro, para cargos na Mesa Diretora e para tratar sobre a decisão do ministro Flávio Dino sobre as emendas parlamentares.
Apesar da movimentação por parte dos deputados contra o decreto de Lula, a expectativa é de que o tema só seja tratado pelo sucessor de Lira no comando da Câmara.
“Em vez de fortalecer quem nos protege, o decreto parece criar facilidades para os bandidos, enquanto desarma e engessa a polícia. O foco do governo Lula está claro: atacar quem combate ao crime, ao invés de enfrentar a bandidagem”, criticou a deputada Silvia Waiãpi (PL-AP).
Ministro da Justiça quer acelerar implementação do decreto
Em meio às críticas e reações contrárias, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, indicou que pretende acelerar a implementação das medidas previstas no decreto. Inicialmente, as regras entrariam em vigor em até 90 dias após a publicação do decreto, mas a expectativa agora é de que isso aconteça até o final de janeiro.
A movimentação acontece após uma jovem de 26 anos ter sido atingida por um tiro na cabeça durante uma abordagem da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no Rio de Janeiro, na véspera do Natal.
“A força letal não pode ser a primeira reação das polícias. Só podemos usar a força letal em última instância. É preciso que a abordagem policial se dê sem qualquer discriminação contra o cidadão brasileiro”, argumentou Lewandowski.
Além de determinar que armas de fogo só sejam usadas em situações de risco iminente e que o uso da força física seja evitado, o novo decreto também defende que as abordagens policiais devem ser feitas sem discriminação. Segundo o texto, “sempre que o uso da força resultar em ferimento ou morte, deverá ser elaborado relatório circunstanciado, nos termos a serem definidos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública”.
O ministro da Justiça pretende lançar uma portaria com regulamentação das medidas e disse ainda que a “polícia não pode combater a criminalidade cometendo crimes”. Segundo ele, policiais precisam dar exemplo.
“A polícia não pode combater a criminalidade cometendo crimes. As polícias federais precisam dar o exemplo às demais polícias”, afirmou o ministro após o caso envolvendo os agentes da PRF.
O especialista em segurança pública Sérgio Leonardo Gomes acredita que essas medidas previstas no decreto podem elevar os casos de morte de policiais ao tornar a ação policial mais restritiva.
“Estamos falando do Brasil, onde precisamos lidar com o crime organizado e o tráfico internacional de drogas e armas. Organizações altamente preparadas e prontas para matar”, disse Gomes ao avaliar o decreto.
Lula já travou outro embate com governadores na área da segurança pública
O decreto sobre uso das forças policiais não é o primeiro embate de Lula com os governadores. Antes disso, o governo petista já havia sido acusado de tentar interferir nas prerrogativas dos estados ao apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para aumentar o poder da União da segurança pública.
À época, os governadores do Consórcio de Integração Sul-Sudeste (Cosud) divulgaram uma nota de repúdio sobre a proposta. “A segurança pública deve ser construída com base na colaboração, no respeito às diferenças regionais e no fortalecimento das capacidades locais, e não por meio de uma estrutura centralizada que limita a eficiência e amplifica a burocracia”, diz a carta de Florianópolis, assinada por Jorginho Mello (SC), Cláudio Castro (RJ), Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG), Renato Casagrande (ES) e Carlos Massa Ratinho Júnior (PR).
Diante das resistências e temendo uma derrota no Congresso, o texto voltou ao gabinete do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para novos ajustes. A principal mudança sugerida pelos governadores é priorizar a atuação conjunta e coordenada das polícias estaduais no enfrentamento a milícias, em detrimento da ideia do governo Lula de fortalecer a atuação da Polícia Federal (PF).
O plano da pasta comandada por Lewandowski também passa por turbinar as competências da Polícia Rodoviária Federal (PRF), tornando-a uma corporação de caráter mais ostensivo, tal como as polícias militares.
Para o delegado Rodolfo Laterza, da Associação de Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), o governo quer gastar um esforço político para aprovar uma PEC, mas poderia implementar outras medidas mais eficientes para a segurança pública.
“Há diversas outras medidas mais simples, que não demandam o esforço político hercúleo de discutir e aprovar uma PEC, e que podem trazer mais eficiência ao enfrentamento da criminalidade organizada, como a integração e a unificação de bancos de dados à disposição das forças de segurança e os protocolos de atuação conjunta dos órgãos. A redução dos índices de criminalidade não é alcançada com mudanças constitucionais, mas com soluções construídas pelo diálogo entre os entes federativos e órgãos envolvidos”, defende Laterza.