São muitas as alegrias deste fim de ano.
Meu pai ouviu do ortopedista que teria que fazer uma cirurgia na coluna para não parar de andar. “Arriscada, altamente invasiva, necessária”.
Marquei consulta para ele com o neurocirurgião que conheci há alguns anos, junto de duas hérnias de disco. As palavras foram bem diferentes. “Sem indicação cirúrgica, perda discreta, vida normal”. Primeira alegria.
Minha mãe levou um tombo há quatro meses. Diante do seu histórico, suspeitou-se de novo evento neurológico, ela que já teve três AVCs hemorrágicos. Mas os exames de imagem não mostraram nada novo. Mesmo assim, ela seguia sem andar direito. Antes de perder a esperança de um dia voltar à vida autônoma que levava, resolveu marcar uma avaliação com a fisioterapeuta que a atendeu quando ficou hemiplégica, quase treze anos antes. A profissional indicou osteopatia, e os movimentos começaram a dar sinais de vida. Segunda alegria.
Minha sogra emagreceu muitos quilos em pouco tempo. Estávamos muito apreensivos com o resultado de uma colonoscopia. De certa forma, estávamos preparados para o nome que ninguém gosta de falar, mas já tentando um quadro de otimismo com base em “estágio inicial da doença”. O resultado saiu. Não tem nada. Vida que segue. Mais uma alegria.
Outro dia, fui ao shopping do lado de casa para fazer as unhas. Pedi ao meu marido que me encontrasse com minha filha de três anos pra ver o papai noel. Do estacionamento no subsolo, ele me mandou uma mensagem: “Beatriz dormiu. Vou esperar um pouco aqui”.
Alguns minutos depois, percebi um movimento estranho do lado de fora do salão. Uma funcionária saiu para ver do que se tratava. “Gente, estão evacuando o shopping, está pegando fogo no quarto andar“. Saí vendo a fumaça já no primeiro. Dois jovens reclamavam com o segurança que o alarme de incêndio não tinha funcionado. “Por que ninguém acionou o alarme de incêndio?!”, um deles perguntava, exaltado.
Eu esperava o telefone do meu marido tocar, já muito aflita. Ele não atendia e, por alguns segundos, eu me senti naqueles momentos em que a gente não tem certeza se está acordado, se é um pesadelo. Morro de medo de incêndio desde criança, quando assisti a cenas de uma novela.
Quando finalmente atendeu, meu marido disse que já estava vendo as pessoas correndo no estacionamento. “Larga o carro e sai”, pedi. Ele disse que o carro estava ao lado da saída, que seria pior subir a pé para a rua. Comecei a ouvir as sirenes dos bombeiros. Ao meu lado, nem todo mundo compartilhava minha aflição: muitas pessoas tinham sido tiradas do supermercado às pressas, mas seguiam com suas sacolinhas na porta, na esperança de reabrirem as entradas.
Foram poucos minutos até a ligação que dizia que minha filha e o pai estavam fora do shopping. Alguns dos minutos de maior medo da minha vida, seguidos do alívio mais importante que já senti desde que engravidei. Provavelmente, a principal alegria deste ano.
Ainda não tinha lido essas frases quando me ligaram, em 2012, dizendo que minha mãe estava sendo levada para o hospital, depois de um evento súbito. Na época, escrevi num post de Facebook: quanta saudade das coisas como eram apenas um segundo antes de deixarem de ser.
A vida é assim. Está tudo bem e, de repente, não está mais. Você está trabalhando em mais um dia comum, quando, subitamente, sente alguma coisa que te leva para uma emergência médica, de onde talvez nunca mais saia. Seu filho vai a um lugar rotineiro e o telefone toca para informar uma tragédia.
Um tempo atrás, minha família levou um susto, quando um tio muito querido perdeu subitamente a consciência, com algo que parecia grave.
Recebi a ligação de frente para minha mãe, para quem ninguém nunca mais ligou para dar más notícias. Desde então, uso diversas táticas para avaliar seu estado emocional e, gradativamente, contar os infortúnios que acontecem ao nosso redor, principalmente quando envolvem doença e morte.
– Mas eu acabei de falar com ele – ela me respondeu logo que comecei.
Pode ser uma maneira estranha de sentir alegria, mas, depois que entendi que nossa presença não salva as pessoas, que a vida muda mesmo muito rápido, que posso ter acabado de falar com alguém que vai embora no minuto seguinte, eu sempre imagino os piores cenários em todas as situações. E, a cada vez que eles não se confirmam, sinto uma alegria quase proporcional à tristeza que teria sentido se acontecesse o contrário.
Sei que a colonoscopia que não deu nada pra nós encontrou um câncer metastático em muita gente; sei que a cirurgia que meu pai não vai precisar fazer foi o último ato de outras pessoas; que muitas outras mães idosas não vão andar nunca mais depois de seus tombos. Sei disso como sei que, em outros anos, o pior foi – e outras vezes será – na minha família. A vida é mesmo assim.
Desta vez, o incêndio no shopping que não se transformou na maior tragédia da minha existência é meu maior presente de natal.
Por tudo que poderia ter sido e não foi, são muitas as alegrias deste fim de ano.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.