“Eu costumo dizer que nenhuma comida, nem a água, consegue ser tão simbólica, fazer parte de tantas culturas quanto o vinho“, diz a especialista em história do vinho Marina Cavicchioli, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A presença dessa bebida em refeições que reúnem pessoas, como ocorre no Natal, é antiga, bem como sua importância em várias religiões.
O historiador Gabriel Gurian, pós-doutorando da Universidade de São Paulo (USP) e membro do projeto Comer História, explica que muitos povos –como egípcios, gregos, sumérios, assírios– mantinham uma teologia relacionada ao que a natureza pode prover.
Esse ponto em comum entre eles reflete o processo de sedentarização, que teve início no Crescente Fértil, região entre os rios Tigre e Eufrates. A sedentarização envolveu o domínio da agricultura de cereais e vinhas, fazendo com que tivessem centralidade na religião e na alimentação.
“Muitos alimentos essenciais foram interpretados como dádiva divina por religiões antiga. Daí a correlação comum entre o vinho, a vinha, a agricultura e a fertilidade e divindades específicas”, diz Gurian.
Uma oferenda aos deuses
Entre gregos, romanos e egípcios, alimentos ou bebidas importantes para a população poderiam ser sacrificados às entidades divinas.
“Isso significava, obviamente, que eles queriam que os deuses olhassem para eles e que isso trouxesse algum tipo de benefício”, conta o professor de história antiga Leandro Hecko, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) .
No Egito Antigo, o vinho era uma bebida da nobreza e da realeza. Ele era usado como oferendas em enterramentos para que o morto levasse a bebida para a eternidade.
“Tudo o que ele fazia nessa vida, ele vai fazer na outra. Então, se ele bebia vinho aqui, ele ia beber lá”, afirma Hecko.
O líquido também era uma oferenda a divindades para ajudar no processo de travessia.
O faraó Tutancâmon, por exemplo, foi sepultado junto a 26 ânforas da bebida. O vinho tinto estava associado ao sangue do deus Osíris, ligado à morte, à ressurreição e à fertilidade.
Para gregos e romanos, o vinho se tornou uma questão de identidade. Alguns dos demais povos também bebiam o líquido, mas essas duas civilizações o misturavam com água.
Um clássico momento de beber vinho entre os gregos era o banquete, em que eles comiam e socializavam. Depois, havia o simpósio, com atividades culturais como declamação de poemas.
Os gregos também tinham as festas dionisíacas, em homenagem a Dioniso e para comemorar a colheita e feitura do vinho, em que havia maior consumo da bebida.
O vinho saiu de seu berço de origem no que hoje é o atual país da Geórgia e se espalhou pelo Mediterrâneo por causa dos fenícios, grandes mercadores.
“O vinho no mundo antigo aparece nas culturas conforme vai se propagando em contextos de sagrado e profano, de ‘encher cara’ ou como oferta”, explica Heckel.
Na Roma Antiga, enquanto o vinho misturado com água era tradicional, bebê-lo puro –algo destinado apenas às divindades– era considerado errado.
Em alguns rituais romanos, o vinho ofertado era derramado na Terra; em outros, um sacerdote derramava a bebida em uma bacia no templo e a deixava embaixo de alguma estátua.
Havia também festas regadas a vinho, como a Saturnália, festividades em homenagem à Saturno –equivalente ao deus Crono, pai de Zeus, da mitologia grega– e a outras divindades.
Nessas festividades, segundo Marina Cavicchioli, da UFBA, barreiras sociais se tornavam mais tênues e havia inversão da ordem vigente. “Todos deveriam se sentar à mesma mesa no banquete juntos e beber o mesmo vinho. Não poderia ter uma distinção social.”
A Saturnália é uma festa que lembra o Natal. As pessoas também trocavam presentes e se reuniam em banquetes, em que o vinho era imprescindível.
Sincretismo religioso
Gabriel Gurian, do Comer História, avalia que o sincretismo religioso possibilitou que o vinho transportasse seu simbolismo de uma cultura para outra, até quando o Império Romano se converte para o cristianismo.
O professor Matthias Grenzer, da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz que no Antigo Testamento da Bíblia há mais de 400 menções de vocábulos que remetem ao vinho.
No catolicismo, o vinho faz parte da Eucaristia, que ocorre na Santa Missa, palavra que vem do grego e quer dizer “dar graças”. Esse gesto nasce de uma ceia pascal judaica em que Cristo, poucas horas antes de sua morte, se refere ao vinho como seu sangue.
Para os judeus, o vinho bebido no tradicional jantar da Páscoa judaica traz à memória o projeto de libertação de seu povo do Egito, como prelúdio da revelação de Deus à Moisés.
Jesus traz mais um sentido ao vinho na ceia. “Mas a dinâmica em princípio é a mesma. O vinho tinto traz a memória do sangue derramado de alguém. E a pessoa ganha presença”, diz Grenzer.
O docente lembra que algo similar acontece durante um brinde, em que os presentes se lembram de pessoas queridas que não puderam estar lá.