“Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”, dizia o personagem Macunaíma no livro homônimo de Mário de Andrade. Havia, de fato, muitas saúvas por aqui, como ainda há. Mas elas não são tão ruins assim. Elas destroem lavouras, mas também fertilizam e contribuem para a aeração do solo. Além disso, são bem gostosas quando torradas e misturadas com uma farofa de milho ou mandioca.
Quem andava por São Paulo no século 19 se deparava com essa curiosa opção de salgadinho oferecida nos tabuleiro das quitandeiras, vendedoras de rua do passado. A formiga apreciada era a içá, fêmea da saúva, também chamada de tanajura. Para o escritor Monteiro Lobato, a iguaria era o “caviar do caipira”. Comia-se içá como se fosse pipoca.
É no final da primavera que elas aparecem. Com o início das chuvas, as formigas saúvas saem dos formigueiros em revoada para se reproduzirem. Nessa época são caçadas para servir de alimento. Além de saborosas e crocantes, elas têm conhecidas propriedades nutricionais, com 44% de proteínas em sua composição. A carne de frango, por exemplo, tem 23%.
O advogado e memorialista Francisco de Assis Vieira Bueno, autor de “A Cidade de São Paulo” dizia que “a quitanda era uma espécie de mercado sedentário de muita originalidade, formado por uma aglomeração de pretas sentadas a um lado da rua, cada qual com seu tabuleiro vendendo variedade de doces e biscoitos, amendoim torrado, pinhão cozido e outras gulodices apreciadas pela arraia-miúda”.
E prossegue: “Na estação em que as formigas saúvas fazem sair seus enxames não faltava o içá torrado. Disto dou eu testemunho, pois sem ter vergonha, o confesso, cheguei a provar a coisa.”
Comer formiga era um hábito local herdado de indígenas e bandeirantes que surpreendia os visitantes e chegava a causar aversão em moradores locais mais abastados. Desde sempre foi uma comida considerada exótica e de pobre. Estudantes da Faculdade de Direito do largo São Francisco, como o próprio Vieira Bueno, nascido em São Paulo, demonstravam preconceito contra a iguaria.
O historiador João Luiz Máximo da Silva em seu estudo “Alimentação de rua na cidade de São Paulo (1828-1900)” conta que no decorrer dos século 19 as saúvas se tornaram um problema para as autoridades. Ele diz que em 1875, o Código de Posturas do município estabelecia prazos para que os moradores extinguissem os formigueiros de suas propriedades.
Nesses tempos ecoava a frase do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve por aqui entre 1816 e 1822 e inspirou Mário de Andrade: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil.” Além de alimento, as formigas eram também uma praga. E as quitandeiras que as vendiam, em geral escravas de ganho, começavam a perder espaço nas ruas da cidade.
Mais recentemente, o consumo de içá foi reabilitado em alto estilo. Restaurantes sofisticados e de comida regional começaram a inclui-la em alguns de seus pratos. É o caso do D.O.M. e do Metzi. O bar 28, no Farol Santander, oferece farofa de saúva sazonalmente.
No interior do estado, algumas cidades promovem festivais que tem a içá como principal destaque. Uma delas é Silveiras, no Vale do Paraíba, região onde as formigas eram um alimento habitual. Na festa de aniversário de Santana do Parnaíba, em novembro, elas também são oferecidas.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.