Para alguns, a angústia pré-natalina começa em outubro, e, mal escrevo essa frase, imagino que se corre o risco da criação de uma síndrome com esse nome. Seria a “síndrome pré-natalina”, cujo diagnóstico e tratamento estariam no manual de diagnósticos de saúde mental (DSM), texto que preza por criar rótulos comercializáveis para as infinitas mazelas humanas.
O fato é que todo ano sou impelida, pelo que escuto no divã e por experiência própria, a escrever sobre família e Natal, uma vez que o sofrimento observado nesta época é palpável.
As famílias se fundam sobre uma dupla (ou um trio, tanto faz), que funciona como uma dobradiça que reúne parentes de ambos os lados. Ela implica numa forçada de barra: entramos nessas novas relações, queiramos ou não.
O encontro com sogros, cunhados, primos e enteados é imprevisível —nunca sabemos quem vai amar ou odiar quem— e instável: até quando esses afetos se manterão?
Carregamos nossas próprias histórias familiares, cujas mazelas e glórias preferimos compartilhar na versão editada. Elas são nosso patrimônio afetivo, para o bem e para o mal. Quando somos apresentados à família do outro, comparações são inevitáveis, abrindo feridas narcísicas por revelarem ou confirmarem o que preferimos não admitir nem para nós mesmos.
Daí que, por exemplo, o contato com sogros ou cunhados respeitosos e amorosos pode nos obrigar a ver limitações afetivas inconfessas de nossa família de origem. Por outro lado, queixas de uma vida inteira podem parecer infantis quando comparadas com um companheiro/a que teve uma infância realmente pesada.
A vergonha e o sofrimento diante dessas constatações nem sempre levam a insights e amadurecimento. Alguns preferem rivalizar com o pacote que vem com o companheiro/a, para disfarçar sua própria angústia. Intrigas, ciúmes e disputas podem selar a dinâmica entre as famílias. Não raro, o agregado faz o papel de “bad cop”, revelando o mal-estar que não temos coragem de apontar em nossa família de origem. Como o cunhado/a que azeda as relações, mas, no fundo, está cumprindo o papel inconsciente de revelar os não ditos, ainda que de forma destrutiva. Resta a escolha de fazer ou não da vida um inferno, e sabemos como o ser humano não cansa de dobrar a aposta no quesito show de horror.
Também não é sem efeitos reconhecer que, por mais que nos apaixonemos pela família do outro, os laços com ela não sobrevivem inteiramente a um divórcio, principalmente com a chegada daquele/a que tomará nossa posição nessas relações. Novas dobradiças demandam novas adaptações, e a coisa range.
Por que a celebração do surgimento de Jesus se reduziria à família? O Natal tem uma longa e curiosa história, que se instituiu a partir das festas do solstício de inverno e está longe de se resumir à ideia de família e consumo, como é vendido hoje.
Nem todos têm relações edificantes com a ascendência e/ou com a descendência, cabendo aos amigos cumprir as funções de solidariedade imprescindíveis entre humanos. Não à toa dizemos que um bom amigo é como um irmão (ou como uma mãe, pai ou filho) e um bom parente é como um amigo.
Desejo a todos um Natal no qual família seja sinônimo de fraternidade, amor e respeito —e não de parentesco.
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