Formigas que cultivam fungos contam com um tipo de memória imunológica social, sugere um novo estudo. O mecanismo permite que elas reajam de forma coletiva com mais agilidade quando uma doença invade o formigueiro pela segunda vez, e seus efeitos podem durar até dois meses.
As conclusões vêm de uma série de experimentos engenhosos conduzidos por pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos. Manipulando a entrada de patógenos (causadores de doenças) nos ninhos da Atta sexdens, popularmente conhecida como saúva-limão, eles estão ajudando a revelar mais semelhanças entre o que acontece no organismo de indivíduos de outras espécies e o chamado “super-organismo”, formado por todos os insetos de um formigueiro.
“A Atta sexdens é uma das formigas cultivadoras ou fazendeiras mais complexas em termos evolutivos, o que abre grandes possibilidades de estudo”, contou à Folha André Rodrigues um dos autores da pesquisa. Junto com outros quatro colegas, o especialista da Unesp de Rio Claro publicou na última quarta (18) as descobertas na revista especializada Proceedings of the Royal Society B.
Tal como as muitas outras espécies de saúva, a A. sexdens é uma formiga cortadeira, que usa pedaços de plantas como “adubo” para o fungo que lhes serve de alimento. Na prática, é como se o inseto terceirizasse sua digestão para o fungo, que decompõe a matéria vegetal no lugar delas e, por sua vez, serve como fonte de nutrientes.
O problema, porém, é que um ambiente propício para o crescimento de fungos nem sempre vai ficar restrito a uma única espécie desses organismos. E isso significa que fungos causadores de doenças, afetando tanto as próprias formigas quanto a lavoura delas, podem acabar crescendo no formigueiro, pondo em risco toda a colônia.
Como as operárias de um formigueiro não costumam se reproduzir e são filhas de uma mesma formiga rainha, que é o único indivíduo do sexo feminino que gera sua própria prole, elas costumam ser vistas como “células” ou “membros” de um único super-organismo. Sendo assim, a tremenda coordenação entre elas também poderia se aplicar ao combate a causadores de doenças, assim como acontece com as células de defesa do corpo humano.
O trabalho da equipe da Unesp e de seus colegas já tinha trazido vários indícios de que algo assim estava acontecendo. Mas ainda faltava confirmar alguns aspectos que são esperados no caso de um sistema imunológico social. Entre os mais importantes estão a especificidade da reação (ou seja, a capacidade de “reconhecer” qual é a ameaça específica contra o formigueiro), a velocidade do contra-ataque e a duração da memória imunológica (isto é, durante quanto tempo o formigueiro se lembra de um atacante do passado).
Os pesquisadores decidiram testar essas possibilidades usando duas duplas de fungos patogênicos. A primeira dupla consegue infectar as próprias formigas, enquanto a segunda é uma ameaça para os fungos “do bem” que elas cultivam (como se fosse uma praga agrícola, digamos).
Para controlarem ao máximo as condições do experimento, os pesquisadores coletaram 80 colônias de saúva-limão em fase inicial na Estação Ecológica de Itirapina, região central do estado de São Paulo. Os formigueiros ficaram protegidos durante quatro meses no Centro de Estudos de Insetos Sociais da Unesp de Rio Claro, desenvolvendo-se normalmente.
Depois disso, a coisa começou a complicar para as formigas (e para os pesquisadores). A “lavoura” normalmente cultivada pelos insetos, que ficava num anexo do formigueiro, foi trocada por outro recipiente, no qual havia pedaços do mesmo tipo de fungo. Só que a “plantação” foi borrifada pelos pesquisadores com os fungos causadores de doenças (em diferentes combinações dependendo do grupo de formigas, para fins de comparação; algumas delas receberam apenas uma solução “fake”, sem patógenos).
Assim que a lavoura contaminada foi acoplada ao formigueiro, câmeras estrategicamente posicionadas passaram a filmar as reações das donas do ninho. Por fim, os cientistas conduziram uma análise minuciosa das imagens, examinando o comportamento dos bichos. Esse processo se repetiu a intervalos regulares, a partir de uma semana da primeira borrifada de fungos (algo semelhante a novas doses de uma vacina no organismo humano, por exemplo).
Conforme o esperado, as formigas reagiam à contaminação tentando limpar a lavoura, e, em menor grau, a si mesmas. A mais comum dessas reações, o chamado “grooming” ou lambedura de fungo, “é uma remoção física dos contaminantes –no caso, os esporos do fungo”, explica Rodrigues.
“Trata-se de uma simples lambedura ou raspagem da superfície, capturando as partículas com o aparato bucal. Elas então armazenam o que foi capturado dentro de uma cavidade abaixo da boca que receberá substâncias antimicrobianas vindas de glândulas. Isso inviabiliza o patógeno.” Por fim, o que sobrou é cuspido em locais específicos de descarte.
Os pesquisadores verificaram que essa reação fica mais rápida e intensa, com o recrutamento de mais operárias para o serviço, quando a mesma espécie de patógeno aparece no formigueiro outras vezes (mas não quando o patógeno é trocado nas borrifadas subsequentes). Isso vale no caso dos que causam doenças nas próprias formigas, mas, curiosamente, não nos que afetam a lavoura. De qualquer maneira, a especificidade e o aumento da intensidade da resposta parecem ter sido corroboradas.
Quanto ao tempo de duração da memória imunológica, ela parece não se sustentar depois de 60 dias. Isso pode estar acontecendo porque novas formigas operárias estão nascendo, crescendo e entrando na “linha de produção” do formigueiro o tempo todo, e essas novas não tiveram contato com os patógenos ainda. Além disso, as “veteranas” da colônia muitas vezes trocam de função e acabam não participando de uma nova operação de desinfecção, o que também atrapalharia a performance do grupo.
“Com base nessas hipóteses, para que essa memória imune coletiva se tornasse algo duradouro, a colônia teria de entrar em contato com o mesmo patógeno continuamente”, explica o pesquisador.