Seria hoje um e-mail, mas deixo que saibam: é uma carta com destinatário e tudo mais.
Ultimamente as palavras não me vêm com a mesma velocidade dos sentimentos, pois bem, apanhei umas e elas rumam até você.
Falo das sextas-feiras quentes, das tardes cercadas de muitos risos nossos, mesa cheia como nossos corações, vinil rodando, música e as vozes tomando tamanho e gosto de felicidade.
O tempo escreve o mundo no homem sem ofertar rascunhos, pode-se voltar ao lugar de um passado, mas é impossível tornar ao tempo passado, estamos presos às expectativas.
Éramos regentes de cada instante do futuro. O futuro? Absoluta e totalmente à mercê de nossos desejos e vontades, circunstâncias ou imprevistos não seriam obstáculos para conquistas.
Agora cada fragmento de memória pesa uma tonelada, tento ordenar meu pensamento em meio a uma tempestade de emoções, mas ele toma as mãos do incontornável.
Lembro de aniversários, formaturas, abraços e ar preenchido por uma alegria indescritível, sentimos os ares divinais, mas antes te via deitado no sofá enrolado em cobertor.
O batizado cercado dos melhores cuidados, os ensaios, as falas e gestos e meu juramento, jurei diante do altar e de todos os presentes, firmei minha palavra apertando a mão de meu irmão diante de todos. Cuidar e auxiliar, mostrar os melhores caminhos, proteger sempre.
Primas da verdade, as impressões cintilam em todo contorno de meus pensamentos, porém sei que do batismo ao colégio foi um piscar de olhos.
Guardo como tesouro a ironia de muitos de seus risos, de tudo que me ensinou com um solene silêncio que precedia muita precisão na retomada da fala sempre com um respeito também preciso.
Saiba da grande admiração de muitos pela sua capacidade de socializar, de construir laços de amizade, sagacidade e inteligência, a habilidade em agradar sem comprometer.
A ideia de final chega sempre marcada pelo desconhecimento, por mitos e representações que pouco significam. É a possibilidade de criar as circunstâncias do futuro que nos impulsiona.
Lembra? Já rimos de modos de forjar um futuro, mas as expectativas mal provocam os ânimos e quando sim eles desabam diante de sombras de obstáculos.
A vida nos deixa vestígios sobre o amadurecimento de esperanças, as horas se encaixam durante todos os dias solidificando um de nossos principais erros: não valorizar o efêmero, o fugaz, a vida.
Ligados à visão do eterno, construímos rupturas com o nosso presente, a vida é hoje, no asfalto quente, no riso natural, nas rodas de fala, na cisma de quem benze seus próprios males.
Deste modo o eterno ocupa o presente tolhendo muito do que nos é de fato mais caro, mais querido, o que nos é central, capital está à mercê do tempo, à mercê da morte.
Acredite que não há excesso em nada desta prosa, nenhuma fantasia pode trafegar pelas linhas da razão. Os trilhos foram criados para refutar o trânsito do que ilude.
Já deixei o eterno de lado para melhorar o que reparo neste presente que deixa meu olhar no chão, minhas noites de pouco sono ou nenhum.
Saiba que não desejo nada a você menor que a ampla alegria que veste tua alma, nada além daquele aroma de orégano que parecia flutuar no molho de macarrão do domingo.
O rádio ligado falando de gol do Corinthians dos anos sessenta, o grito de toda Zona Leste cabia em teu sorriso, no último minuto, no peito e na raça, a garganta seca, as pancadas do dia a dia.
O hino do timão parece ter sido encomendado pelo povo sofrido da Zona Leste, a vitória é uma espécie de remédio para as mais profundas dores de quem nunca teve nada.
Vou dizendo e vendo o Mosqueteiro do Corinthians nas últimas vestes de seus avós, de seu pai que é meu irmão, o hino fala de nossas almas, a luta dos dias e este amor que só se dá aqui na nossa Leste.
Pela janela os gritos dominicais: “Vai Corinthians”, bem ao certo sei que você não vai a lugar nenhum, você permanece conosco e dentro de mim.
Seu coração não parou, ele bate dentro do meu; peço que leia e releia esta carta, Clever.
Clever Cecílio da Silva de Almeida Cândido, sobrinho e afilhado de Osmair Cândido, o Fininho, escritor e sepultador aposentado da Prefeitura de São Paulo.
Morreu nos braços do tio, infarto fulminante aos 40 anos, no dia 17 de novembro de 2024.