A pior forma de solidão é a companhia de um paulista, dizia Nelson Rodrigues, que também disse que o horizonte de São Paulo é uma parede, depois outra, outra mais etc.
Em uma de suas crônicas de 1969 coligida na coletânea “O Remador de Ben-Hur”, o autor descreve alegoricamente um encontro com um amigo carioca que havia se mudado para São Paulo (para ganhar dinheiro), mas que em dado momento sente uma necessidade pungente de “algo transcendente, vital, insubstituível”. Chispa então de carro para o Rio “numa velocidade fulminante” apenas para ver o horizonte —o mar do Leblon.
Nasci no Rio, mas não trago na memória nenhuma imagem de meus primeiros quatro anos de vida entre Tijuca, Usina, Alto da Boa Vista e São Conrado. Não plasmei o horizonte atlântico naquela tenra idade. Vivo em São Paulo desde então. Sou, para o bem e para o mal, paulistano.
Pois bem, sinto-me com lugar de fala para ir um pouco mais longe do que Nelson: a pior forma de solidão é a companhia de um paulista —na São Silvestre.
Nada contra a prova, tudo contra quem a critica só porque um milhão de outros participantes, fantasiados ou não, carregando cartazes ou não, fazendo coreografias ou não, param a cada cem metros para fazer a enésima selfie. A São Silvestre, se um dia foi uma prova importante do calendário dos atletas de “elite”, tornou-se com o tempo um pré-Carnaval, uma maneira de o cidadão festejar correndo (mais ou menos) o 31 de dezembro. Por isso, quanto mais desorganizada a SS, melhor.
Mas a questão é que nada justifica passar o Réveillon em São Paulo, nem mesmo a prova. A maioria da população da cidade revelou, segundo Datafolha de 2022, que deixaria de vez a capital, caso pudesse. Ao quedar-se no 31, o morador falha em seu dever elementar de se afastar daqui ao menos nessa data que, como nenhuma outra, requer um pouco de autoindulgência.
E não, você não vai encontrar indulgência na contagem regressiva da avenida Paulista, no Bar Brahma, no restaurante-último-hype-do-Instagram, no Vagão Plaza (existe ainda?), na Natura Musical, no boteco da feijoada fiel de sábado ou em alguma quadra de escola de samba que, inteligentemente, estará em recesso no dia. Como dizia Itamar Assumpção, “Venha até São Paulo relaxar, ficar relax/ Tire um xerox, admire um triplex.”
Sobra para a São Silvestre mesmo a dura tarefa de ser o evento mais divertido do Réveillon.
Este ano, pela primeira vez e justamente na véspera do centenário da prova, uma nova empresa organizadora assumiu a corrida. E a marca esportiva transnacional Asics passou a cacifá-la. Seu principal executivo no Brasil falou em proporcionar “a melhor experiência”, o que parece bastante temerário naquela muvuca monstro, quando não um discurso francamente marqueteiro.
Melhor experiência quem provê ali é o Betão Souza, o parça que desde 2016, voluntariamente e às próprias custas, oferece cerveja de graça para os corredores da SS bem no final da subida da Brigadeiro, no quilômetro 41.
Gente como o genial Itamar, que era paulista de Tietê e já cruzou faz uma cara a terceira margem; e o Betão, em sua loucura muito particular, são o que melhor São Paulo tem para dar. Mas nem mesmo esses malucos-beleza valem a verdadeira aridez de três desertos que é a passagem de ano por aqui.
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