Digno de um thriller americano, o assassinato de um CEO da maior empresa de seguro-saúde do mundo, a UnitedHealthcare, continua a gerar debates, mesmo após a prisão do principal suspeito, Luigi Mangione. A história de vida do jovem tem animado ainda mais manifestações e memes que o transformaram em uma espécie de herói das vítimas dos seguros, contra as grandes empresas e seus executivos que recebem bônus milionários ao expandir lucros de forma predatória.
É certo que, em termos de acesso à saúde, os americanos se encontram em situação muito mais precária que nós, brasileiros: eles não têm um sistema universal de saúde pública e mais da metade dos adultos estadunidenses têm dívidas de saúde. A despeito de falhas e subfinanciamento, o SUS existe e está em cada canto desse país continental, da primeira vacina para os bebês até os custosos transplantes de órgãos.
Mas é justamente nas lacunas desse sistema unificado que a saúde privada se consolida, com seu modus operandi especializado em transformar a vida e a morte em mercadoria. As disparidades entre os EUA e o Brasil são enormes, mas os paralelos também.
Vencedora do prêmio Pulitzer, uma série de reportagens denunciou como os seguros de saúde americanos têm utilizado algoritmos de inteligência artificial para tomar decisões negando tratamento para idosos e pessoas com doenças graves. Coincidindo com a implementação da IA entre 2020 e 2023, o lucro líquido da UnitedHealth Group aumentou de aproximadamente US$ 15,4 bilhões para US$ 22 bilhões. Ao passo que a taxa de negativas de cobertura para cuidados pós-agudos mais do que dobrou: de 10,9% em 2020 aumentou para 22,7% em 2022.
É provável que planos de saúde brasileiros já estejam utilizando ferramentas de IA, não sabemos. Mas suas práticas abusivas são amplamente conhecidas. As operadoras negam cobertura a terapias essenciais para crianças autistas e promovem o cancelamento unilateral dos planos de idosos com justificativas frágeis. Esses são apenas alguns exemplos da má conduta recorrente, dada a baixa capacidade de regulamentação e controle públicos.
Não por acaso, também no Brasil o setor vive seu melhor momento desde a pandemia de covid-19. Somados, os lucros líquidos das operadoras totalizam R$ 3 bilhões em 2023, valor que saltou para R$ 8,7 bilhões até setembro de 2024, em meio ao crescimento de reclamações e ações judiciais.
Entre janeiro e outubro de 2024, foram registradas 36.525 novas ações judiciais relacionadas a planos de saúde, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Isso representa uma média de 120 processos por dia, um aumento de 65% em relação a 2023. E a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que deveria promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, sofre acusações de omissão, enquanto advoga em favor dos planos.
O assassinato do CEO expôs as tensões sociais relacionadas ao tema e gerou uma catarse coletiva, destacando a urgência de repensar os sistemas de saúde públicos e privados. Mais do que apontar falhas, é preciso uma mobilização social por transparência, regulação e fiscalização eficaz. No Brasil, fortalecer o SUS e exigir que a ANS cumpra seu papel são medidas fundamentais para equilibrar o sistema e proteger os mais vulneráveis, reafirmando a saúde como um direito constitucional de todos.
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