O recente lançamento do filme “Limonov: the Ballad” na Europa, baseado no livro de Emmanuel Carrère, faz ressurgir uma biografia que revela, de forma histriônica, o enigmático desejo humano. Carrère se delicia em demonstrar, fato após fato, as inconsistências de um personagem que, de tão rocambolesco, pareceria forçado numa obra de ficção.
Eduard Veniaminovitch Savenko, autobatizado Limonov (misto de limonka, gíria para granada, e limão), é um gato com dezenas de vidas, obcecado pela aventura, pelo sucesso e por ganhar dinheiro. Acontece que, como já nos alertava Lacan, o desejo é algo que só se conhece a posteriori, e é entre o proferido e o realizado que descobrimos as escolhas reais que desenharam uma história. São elas que, ao fim e ao cabo, revelarão os caminhos libidinais pelos quais o desejo se revelou.
O russo Limonov é bandidinho vulgar, guerrilheiro impiedoso, fascista, escritor aclamado, amante que tenta o suicídio quando leva toco da mulher, corno convicto da esposa ninfomaníaca e drogadita, mendigo gay, prisioneiro realizado, aprendiz de iogue.
Enfim, uma coleção de títulos que fazem de sua vida um prato cheio à especulação psicanalítica, que só serviria para reduzi-la, afinal, uma vida é sempre muito mais. O pano de fundo histórico, no qual vemos a URSS se esfacelar e as guerras que se sucedem, é apresentado com complexidade e sem maniqueísmos, marca registrada de Carrère.
Limonov, que tanto idolatrava a guerra e os gulags, a ponto de lutar ao lado dos sérvios na guerra da Bósnia, não deixou de tornar pública sua fragilidade amorosa. Enquanto sofria pelo abandono da amante, fato pelo qual quase se suicidou, buscou a companhia de mendigos negros: escândalo sexual, racial e social numa estocada só. Sofreu por amor como um adolescente e cuidou de “suas” mulheres o quanto pôde ao longo da vida, sendo considerado um cara decente no trato individual.
A intensa e aventureira vida do biografado nos serve de espelho para pensar as escolhas amorosas em sua vertente mais determinante: a inconsciente. Aquela que nos faz perguntar, incrédulos, por que escolhemos esse/a e não aquele/a, seja com a cabeça no travesseiro, seja recostada no divã.
Não raro, observamos os pares que se formam à nossa volta, sem que consigamos atinar os fios que os mantêm unidos. Como a feminista lésbica que se afunda em uma relação nada diferente de um casamento heterossexual, conservador e abusivo; o amante torturado por relações que nunca inspiraram lealdade e nas quais insiste estar buscando justamente esse traço; ou ainda a pessoa a quem não faltam atrativos mas que sofre de uma solidão crônica e enigmática.
As fantasias que sustentam nossas relações são calcadas em experiências de infância, momento no qual aprendemos a amar justamente com aqueles que nunca poderiam tornar-se nossos pares: os pais. Daí a sensação de que o prazer de amar vem acompanhado da iminente rejeição que todos nós forçosamente conhecemos.
Nossas escolhas amorosas dão bandeira das fantasias inconscientes que nos regem e que, por vezes, passam longe das listas de qualidades e defeitos que supomos privilegiar num parceiro. Amar é dar bandeira do pouco que sabemos de nós e uma chance considerável de vir a saber um pouquinho mais.
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