O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, abriu divergência no julgamento do Marco Civil da Internet (MCI), nesta quarta-feira (18), e votou pela exigência de decisão judicial para responsabilização das redes sociais por conteúdo ofensivo publicado por usuários.
Com isso, propôs a inconstitucionalidade apenas parcial do artigo 19 da lei, segundo o qual as plataformas respondem pelo conteúdo que seus usuários postam apenas se deixarem de cumprir uma ordem judicial de remoção.
Na semana passada, os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, relatores de ações sobre o tema, propuseram a inconstitucionalidade do artigo 19. Votaram no sentido de que, em caso de postagens ofensivas, que caracterizem crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), bastaria a notificação direta da pessoa ofendida à plataforma para que esta passasse a responder pela ofensa.
Na visão das plataformas, esse mecanismo, conhecido como “notice and takedown” (notificação e retirada), criaria um incentivo para a remoção generalizada de postagens, para mitigar riscos de punição das empresas de tecnologia. Ainda que algum conteúdo fosse lícito e legítimo, bastaria à pessoa mencionada pedir a remoção do conteúdo, por considerá-lo ofensivo, para pressionar a rede social a retirá-lo, por temor de enfrentar problemas na Justiça.
Para Barroso, seria importante manter, nesses casos, a lógica do artigo 19 do MCI para assegurar a liberdade de expressão – o próprio texto do dispositivo diz que esse é seu objetivo. Disse não considerar adequado que, a partir de uma notificação privada de um governador, a rede social se veja a impelida a retirar postagens que o chamem de “medíocre” ou “mentiroso”, por exemplo.
“A remoção, em caso de ofensas e crimes contra a honra, não pode prescindir de decisão judicial. Conteúdos relacionados à honra, ainda que, se para alguém, represente crimes de injúria, calúnia e difamação, devem permanecer sob o regime do artigo 19, sob pena de violação da liberdade de expressão. Se prevalecer esse entendimento, se alguém disser que o governador é burro, ele pode pedir a remoção, e não me parece que seja bem assim”, afirmou.
“Conteúdos envolvendo a honra (seja calúnia, injúria ou difamação) são aqueles que normalmente veiculam críticas ao governo, a agentes públicos e a pessoas em geral, bem como denúncias de crimes, abusos e mau comportamento (como assédio), de modo que a supervisão judicial é necessária para evitar a censura e tentativas de silenciar pessoas ou ocultar fatos criminosos ainda pendentes de apuração”, disse depois no voto.
Com pedido de vista, Barroso vota antes e pode influenciar outros ministros
Na semana passada, Barroso interrompeu o julgamento com um pedido de vista. Por isso, nesta quarta, trazendo seu voto sobre a questão, passou à frente de outros ministros na deliberação. A divergência, aberta nesse momento inicial, é uma tentativa de influenciar os demais ministros e redirecionar a discussão, que caminhava num sentido mais restritivo.
No voto, Barroso propôs que, em caso de disseminação de conteúdos que configurem crimes contra alvos específicos, seja aplicado o mecanismo de notificação e retirada. Isso valeria também em caso de criação de perfis falsos. “Não há fundamento constitucional para um regime que incentiva que as plataformas permaneçam inertes após tomarem conhecimento de claras violações da lei penal”, afirmou.
Nos casos de anúncios ou conteúdos impulsionados (recomendação mediante pagamento à plataforma), a responsabilidade independe de notificação.
Em outro trecho, Barroso propôs a adoção doo dever de cuidado, nome que se dá a políticas de monitoramento ativo de conteúdos que configurem crimes mais graves. “Os provedores têm o dever de cuidado de mitigar os riscos sistêmicos criados ou potencializados pelas suas plataformas. Tal dever de cuidado se materializa em medidas para minimizar esses riscos e seus impactos negativos sobre direitos individuais, coletivos, segurança e estabilidade democrática”, diz o voto
As plataformas poderão ser punidas caso incorram em “falha sistêmica” e não consigam coibir os seguintes crimes:
- pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes (arts. 217-A, 218, 218-A, 218-B, 218-C, Código Penal, e arts. 240, 241-A, 241-C, 241-D, Estatuto da Criança e do Adolescente);
- induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação (art. 122, Código Penal);
- tráfico de pessoas (art. 149-A, Código Penal);
- atos de terrorismo (Lei nº 13.260/2016, arts. 3º e 5º); e
- abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado (arts. 359-L e 359-M, Código Penal).
Como não há um órgão regulador, caberia ao Ministério Público promover ações civis públicas para punir as plataformas com o pagamento de indenizações.
Nos votos de Toffoli e Fux, a proposta é de responsabilidade direta das plataformas, sem necessidade de notificação, em caso de publicação desse tipo de conteúdo.
Toffoli ainda defendeu a remoção imediata de “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados” contra grupos ou indivíduos “vulneráveis” ou que causem “danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral”. O maior risco desses pontos é a censura de críticas a autoridades, políticos, órgãos públicos e comportamentos.
Barroso, em seu voto, ainda divergiu de Fux ao propor que a responsabilidade das redes sociais por conteúdo de terceiros seja subjetiva e não objetiva. Na prática, ela só pode ser punida se contribuir ativamente para a promoção de algum conteúdo ilícito, e não pela mera publicação dele por parte do usuário na plataforma.
Diferentemente de Toffoli, ele também não incluiu no seu voto obrigações adicionais para “marketplaces”, como são conhecidas as plataformas de comércio eletrônico que conectam vendedores a compradores de produtos (como Amazon, Mercado Livre, Aliexpress, Shopee, etc.). Toffoli propôs que elas sejam punidas se ofertarem produtos ilícitos (como “TV box” piratas – aparelhos que captam clandestinamente canais de TV a cabo pagos – e defensivos agrícolas proibidos no Brasil), ou mesmo em caso de vício ou defeito dos produtos ou serviços ofertados.
“Não incluo qualquer obrigação adicional sobre marketplaces”, resumiu Barroso no início do voto.