A promotoria militar do Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou à Justiça um policial sob acusação de crime de tortura, utilizando, pela primeira vez, imagens de câmeras corporais como prova.
De acordo com a denúncia apresentada neste mês, em 4 de julho do ano passado, o sargento Leilton Pereira de Oliveira teria dado um soco no peito de um suspeito e torcido seu braço de maneira extrema, com o objetivo de forçá-lo a revelar onde estaria o dinheiro que, supostamente, havia sido roubado de uma vítima. O caso ocorreu na cidade de Campos dos Goytacazes, norte fluminense.
Segundo o órgão, o PM escondeu a câmera, mas os gritos de dor do suspeito foram captados pelo áudio. Testemunhas que passavam pelo local teriam demonstrado apoio ao agente. O segundo policial presente na ocasião também foi denunciado sob suspeita de prevaricação, por não ter prendido o colega em flagrante. A reportagem não conseguiu contato com os acusados, que, em depoimento, negaram as acusações.
Em nota, a Polícia Militar afirmou que “o comando da corporação não compactua [com casos] nem tolera quaisquer desvios de conduta”.
O caso chegou à Promotoria após o suspeito afirmar, em audiência de custódia, que “já algemado, foi agredido com chutes e socos no corpo e na cabeça”. Inicialmente, a investigação foi conduzida por agentes do próprio batalhão, que concluíram que as lesões haviam sido causadas por uma luta com a vítima do roubo e com as pessoas que o detiveram.
Na análise das imagens das câmeras, os investigadores declararam que “nota-se que os policiais em nada contribuíram para as lesões”. No entanto, a apuração da PM omitiu o fato de o agente ter obstruído a lente da câmera.
A conclusão foi enviada ao Ministério Público, que discordou da avaliação e caracterizou a ação do policial como tortura.
“O crime de tortura, em sua definição jurídica, difere um pouco da noção comum. Ele busca criminalizar a conduta de quem, exercendo poder ou autoridade sobre a vítima, tenta obter dela algo ou algum comportamento. A coação física ou psicológica, mediante violência ou grave ameaça, já configura, ao menos em tese, o crime”, explicou o promotor Paulo Roberto Mello da Cunha.
Desde 2018, quando a lei 13.491 transferiu casos de tortura praticados por militares contra civis da Justiça comum para a militar, foram registradas 12 denúncias à Justiça Militar. A mudança ampliou a possibilidade de militares serem julgados na esfera militar por crimes cometidos no exercício da função.
“Na época, alguns setores da sociedade temeram que os casos não fossem denunciados, preocupados com possíveis corporativismos nas corregedorias e na Justiça militar”, ressalta o promotor. Só neste ano, seis denúncias foram registradas, representando metade do total.
As câmeras corporais têm sido um recurso importante para a obtenção de provas. “Esses dispositivos são ferramentas decisivas na apuração de denúncias de abuso, pois registram os fatos de forma objetiva e imparcial”, avalia Mello da Cunha.
No Rio de Janeiro, as câmeras foram implantadas em 2022 e estão presentes em todas as unidades operacionais da corporação. Cerca de 13 mil câmeras em operação registram, de forma ininterrupta, as atividades diárias dos policiais.
Em maio, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma diretriz nacional que prevê que os equipamentos devem ser obrigatoriamente ligados em operações, atuações ostensiva e em contato com presos.
As novas normas nacionais admitem três modalidades de uso: acionamento automático, remoto e pelos próprios integrantes da força de segurança.
Na última segunda (9), o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, determinou ao Governo de São Paulo a manutenção do modelo de gravação ininterrupta dos dispositivos e seu acionamento automático.
A decisão veio em meio a uma crise na segurança enfrentada pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), com casos em sequência de violência policial. No último dia 5, o governador chegou a admitir que errou nas críticas que fez ao uso das câmeras corporais pela PM desde o período em que era candidato ao cargo.
“Eu admito, estava errado. Eu me enganei, e não tem nenhum problema eu chegar aqui e dizer para vocês que eu me enganei, que eu estava errado, que tinha uma visão equivocada sobre a importância das câmeras [corporais]”, disse o governador. “Eu era uma pessoa que estava completamente errada nessa questão. Eu tinha uma visão equivocada.”