Se filosofar é aprender a morrer, como dizia Montaigne, estudar biologia é aprender a ouvir outros seres vivos, além dos primatas, caninos e felinos com os quais alimentamos a pretensão de nos comunicar. Morcegos, elefantes, baleias, gralhas –quem sabe até árvores– também têm algo a nos ensinar.
Ouvir, e não só empalhar, descrever, dissecar, radiografar ou sequenciar o DNA. Ouvir, literalmente: captar os sons que animais produzem, sem pressupor que sejam aleatórios, estereotipados, desprovidos de significado. Ao contrário.
Em fevereiro de 2023, uma destas colunas aqui tratou do fascínio com a possibilidade de casar a gravação de vocalizações e outros barulhos produzidos por animais com sua interpretação por inteligência artificial. E delirava com a chance de poder enfim falar com os bichos.
Para falar é preciso antes entender, parece óbvio. Ainda estamos longe disso, e provavelmente despreparados para eventualmente topar com um grito de socorro, quando conseguirmos compreender o que estão dizendo.
A inversão de perspectiva –ouvir antes de falar– foi sugerida pela leitura de uma reportagem de Neil Savage na revista Nature com o título “Inteligência artificial decodifica os chamados da natureza”. Saiu na última terça-feira (10).
(Se você lê inglês, não perca. Se não lê, use o mesmo recurso de apelar para a IA, buscando um dos tradutores disponíveis na rede, como o Google Translate.)
Savage apresenta o trabalho de Shane Gero, biólogo do Canadá que estuda a comunicação de baleias há 20 anos. Ouvindo os cetáceos Gero aprendeu que esses gigantes usam sons específicos para identificar membros de um grupo (nomes, pois não?) e que cachalotes de regiões diversas do oceano utilizam dialetos.
O emprego de “nomes próprios” entre animais, de resto, não se restringe a baleias. Já foi verificado também entre elefantes, morcegos e saguis, entre outros. A IA acelerou esses estudos pela capacidade de detectar padrões em grandes massas de dados (no caso, gravações digitais).
Distinguir sinais peculiares do ruído de fundo e recensear sua repetição de pouco serviria, contudo, sem estabelecer correlações com determinados comportamentos. Por exemplo, o deslocamento de um filhote para perto da mãe após ouvir dela um som particular.
Em outras palavras, só as ferramentas da bioacústica digital e da IA não bastam. É preciso haver observadores humanos capazes de emparelhar sons emitidos com as atitudes dos animais em estudo. Em bom português: não basta escutar, cumpre também ouvir.
A audição se complica quando os próprios animais se tornam incapazes de escutar uns aos outros. É o caso de golfinhos, baleias, tartarugas e tantos mais habitantes dos oceanos infernizados pela poluição sonora das máquinas que humanos usam para cruzar as águas ou explorar suas riquezas, como petróleo no subsolo marinho.
O episódio “Tem que levantar a voz” do podcast Radio Novelo Apresenta conta que golfinhos da baía da Guanabara passaram a se esgoelar para conseguir tagarelar entre si, com o barulho ensurdecedor na área. Ainda resistem por lá, mas o grupo que já teve 400 indivíduos hoje se vê reduzido a 30.
É de chorar.
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