A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo confirmou ao STF (Supremo Tribunal Federal) que entregou ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) dados de prontuários médicos de pacientes que realizaram aborto legal em hospital do município.
A revelação consta em documento enviado na última segunda (9) em resposta a uma intimação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que pediu para que o município e o estado de São Paulo informassem sobre eventual entrega de dados sensíveis de pacientes ao Cremesp e proibiu novas requisições desses documentos.
A decisão foi tomada na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 1141 do PSOL contra uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proibiu o uso da técnica de assistolia fetal para interromper gestações acima de 22 semanas em casos de estupro. A técnica é recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para interrupção de gestações avançadas.
Em maio, Moraes havia suspendido a resolução em caráter liminar e proibido a abertura de procedimentos administrativos ou disciplinares baseados nela.
A Folha revelou que o conselho está realizando uma operação para fiscalizar o aborto legal nos hospitais do estado e solicitando acesso aos prontuários das pacientes que utilizaram o serviço de interrupção da gravidez conforme a lei.
Na sua defesa, a secretaria de São Paulo diz que, por determinação do conselho médico, requereu os prontuários no hospital [o documento não cita qual instituição e nem quando isso ocorreu] e os entregou ao Cremesp.
“Conforme requisitado pelo órgão de classe, os prontuários foram entregues em disco ótico digital de armazenamento de dados e em caráter sigiloso”, diz um trecho.
De acordo com a secretaria, solicitar o prontuário está dentro das atribuições do Cremesp, conforme o artigo 90 do Código de Ética Médica, segundo o qual “é vedado ao médico deixar de fornecer cópia do prontuário médico de seu paciente quando de sua requisição pelos Conselhos Regionais de Medicina”.
Por essa razão, a secretaria entende que apenas cumpriu o seu dever legal e que, conforme o artigo 23, inciso III do Código Penal, “não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.
Para a secretaria, o tratamento desses dados sensíveis para investigação de denúncias é permitido dentro desse contexto.
“No caso dos prontuários médicos, o Cremesp possui uma função fiscalizatória e regulatória, prevista na Lei nº 3.268/1957, para investigar possíveis infrações éticas cometidas por médicos”, alega a pasta.
Esse poder de fiscalização e investigação, diz a secretaria, autoriza o acesso aos dados de prontuários médicos sem a necessidade de consentimento prévio do paciente, já que há uma obrigação legal ou regulatória em curso.
“Neste caso, o compartilhamento dos prontuários se deu dentro de um processo investigativo que visava apurar a conduta adotada em rede pública de saúde, sendo uma ação administrativa prevista por lei e que visa atender os interesses das próprias pacientes.”
A secretaria informa ainda que o assunto já foi objeto de apuração por parte da Corregedoria Geral do Município e do Ministério Público, via inquérito policial, e em ambos os casos restou confirmado que não houve qualquer ilegalidade em relação à disponibilização dos prontuários.
Para o advogado Igor Mascarenhas, membro consultor da Comissão Especial de Direito Médico do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a prefeitura agiu dentro da legalidade. “Se não entregasse, o diretor clínico, que é médico, poderia ser penalizado por isso.”
Segundo ele, os profissionais só poderiam deixar de cumprir essa decisão se houvesse uma ilegalidade clara. “Decisão ilegal a gente não cumpre. Mas, no primeiro momento, ninguém poderia dizer que essa ordem do Cremesp é ilegal.”
Em tese, explica o advogado, todo ato administrativo é revestido de presunção relativa de veracidade e legitimidade.
No entanto, diz ele, a situação muda se no curso das investigações ficar comprovado que o Cremesp agiu de forma direcionada para penalizar médicos e médicas que atuam no serviço de aborto legal. “A gente tem que esperar um maior detalhamento porque, eventualmente, pode ter situações de abuso.”
Sobre os prontuários já entregues ao Cremesp antes do veto de Moraes, Mascarenhas diz que o ato abre margem para que os profissionais afetados questionem licitude dessas provas.
De acordo com o advogado, todas essas decisões recentes do STF estão sendo feitas de forma monocrática e devem ser submetidas ao plenário para serem ou não ratificadas.
Na última terça (10), em resposta à intimação do STF, o presidente do Cremesp, Angelo Vattimo, negou qualquer descumprimento às decisões da Casa e disse que as fiscalizações realizadas fazem parte de suas atribuições legais e rotineiras.
Disse ainda que, desde a liminar de 24 de maio deste ano, determinou a suspensão da tramitação de todas as sindicâncias e processos ético-profissionais em curso em relação aos procedimentos de aborto legal. Segundo o conselho, também não houve nenhuma instauração de processo administrativo disciplinar.
Em abril deste ano, a colunista da Folha Mônica Bergamo revelou que ao menos três profissionais estariam sendo perseguidos pelo Cremesp, que chegou a decidir pela suspensão cautelar de duas médicas que realizaram aborto legal na unidade.
Em meio a esse imbróglio, o Ministério Público Federal entrou com uma ação na Justiça para que o Cremesp seja condenado a pagar R$ 500 mil em indenização por danos morais por abuso de autoridade contra médicos que realizaram aborto legal em hospitais de São Paulo.
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis