Criadores de sites, programas e aplicativos para aparelhos móveis e televisores têm adotado técnicas mais “limpas” na hora de criar os sistemas que serão utilizados por milhares de usuários. São práticas conhecidas como software verde, um conceito antigo, mas que tem ganhado força agora, especialmente entre empresas estrangeiras.
O objetivo é reduzir o custo ambiental crescente que surge com o uso das tecnologias da informação e sistemas de inteligência artificial (IA). Consultar o saldo bancário ou pedir ajuda a uma IA, por exemplo, consomem água e energia, um impacto que já tem sido calculado. Pedir entre 10 e 50 respostas do Chat GPT equivale a “beber” uma garrafa de 500 ml de água, segundo Shaolei Ren, professor associado da UC Riverside —sem falar dos bilhões de quilos de lixo eletrônico produzidos todo ano no mundo.
No Brasil, o movimento ainda é incipiente, devido à falta de investimentos e políticas públicas de incentivo, afirmam especialistas.
As técnicas de software verde envolvem a forma como os programadores escrevem as instruções —ou códigos— para que o computador, o celular ou a televisão possam realizar uma tarefa. Esses aparelhos são como um chefe de cozinha, que sabe seguir receitas detalhadas se escritas de uma forma que ele entende.
Há várias receitas para chegar no mesmo resultado. Algumas são simples e outras mais complexas, e vão demandar um esforço diferente do cozinheiro. Na programação, códigos simples exigem menos processamento, enquanto códigos complexos exigem mais.
Essa diferença afeta os servidores e data centers onde ficam guardadas as informações.
Quando processam códigos complexos, essas máquinas consomem mais energia e aquecem mais, podendo alcançar temperaturas de até 300°C (graus Celsius), o que exige resfriamento constante. Para evitar um superaquecimento, utiliza-se ar-condicionado para jogar ar frio sobre as máquinas, o que consome grandes quantidades de água.
Já códigos mais simples, que reduzem o tempo de processamento por serem mais objetivos e rápidos e consomem menos energia, evitam o aquecimento excessivo das máquinas, reduzindo também a necessidade de resfriamento e o consumo de água.
“O uso das imagens, dos vídeos, das fontes, das cores, tudo isso vai impactar em quanta energia vai ser requerida dos servidores. Como desenvolvedores, somos responsáveis em desenhar softwares que vão exigir menos consumo”, afirma Facundo Armas, diretor do Estúdio de Negócios Sustentáveis da Globant, setor especializado em sustentabilidade e tecnologia.
A empresa é responsável por pensar em soluções de TI e aplicativos para diversas marcas globais, como KFC, MCDonald’s, grupo Royal Caribbean, Avianca, Nissan e FIFA, além de streamings populares de séries e filmes.
Dos quase 30 mil funcionários, 13 mil já foram treinados em técnicas de TI verde para minimizar o impacto ambiental, abrangendo cinco módulos que incluem codificação, infraestrutura e interface do usuário, diz Facundo.
“A energia é limitada no mundo. Então, como eu consigo fazer um código mais eficiente que consuma menos energia? Se você tem essa consciência, você começa a pensar em estratégias de hackear o sistema para fazer algo da forma mais simplificada possível”, diz Kefreen Batista, vice-presidente de tecnologias da Globant Brasil.
VEJA COMO ESCOLHAS DO PROGRAMADOR REDUZEM CONSUMO DE ENERGIA
Algumas escolhas simples de codificação e design dos aplicativos já ajudam a reduzir o impacto energético do uso e, consequentemente, o consumo de água.
É o caso de fundos escuros nos apps. Cada pixel claro consome mais energia para se iluminar. Os pixels que mostram tons escuros, especialmente os pretos, praticamente desligam, o que mantém um consumo energético mais sustentável.
Imagens e vídeos consomem muito espaço e também exigem mais processamento para serem exibidos. Uma solução de software verde é desenvolver apps que fazem a compressão dos arquivos em tamanhos reduzidos.
Além disso, o aplicativo pode exibir essas mídias em baixa resolução e aumentar a qualidade somente se o usuário escolher visualizar a imagem ampliada. Além de economizar energia, reduz o uso de dados.
Nos aplicativos de bancos, por exemplo, o botão de consulta de saldo, que exige um toque do usuário para ser ativado, evita consultas automáticas desnecessárias. É uma maneira de reduzir o impacto energético de algo que muitos usuários talvez nem queiram consultar toda vez que acessam o aplicativo, porque, apenas para exibir o saldo, o app precisa acessar dois computadores bancários de alto desempenho (mainframes).
No caso de sistemas que geram registros de atividade ou criam novas versões de arquivos, os dados podem se acumular e ocupar muito espaço de armazenamento, além de exigir mais processamento para organizar ou encontrar as informações relevantes. Um design de programação sustentável pode suprimir registros desnecessários e eliminar versões redundantes para contornar esse problema.
ADOÇÃO DE CÓDIGOS VERDES AINDA ENGATINHA NO BRASIL
Segundo Danielle Costa, professora e pesquisadora em tecnologia, banco de dados e ciência de dados na UFPA (Universidade Federal do Pará), pouquíssimas empresas adotam práticas de sustentabilidade no Brasil —atitude mais comum entre as multinacionais com sede no país, caso da Globant, de origem argentina.
Em suas pesquisas de mestrado e doutorado, Costa concluiu que grandes empresas brasileiras de tecnologia ainda estão longe de implementar indicadores de sustentabilidade, algo comum entre as estrangeiras. Para a pesquisadora, a demanda por práticas sustentáveis no país deve vir do mercado e dos investidores, como ocorreu no exterior.
“O ESG [sigla em inglês para ambiental, social e governança] só ganhou força quando grandes investidores passaram a exigir indicadores sustentáveis para investir. As mudanças só ocorrem quando o impacto financeiro é sentido”, afirma.
A pesquisa “Maturidade ESG nas empresas brasileiras 2024,” encomendada pela Beon ESG, Nexus e Aberje, revela que 51% das empresas de médio e grande porte no Brasil adotam práticas sustentáveis, um aumento de 14 pontos percentuais desde 2021.
A doutora em engenharia da computação e sistemas digitais pela USP (Universidade de São Paulo) e especialista em sustentabilidade e inovações tecnológicas, Márcia Machado, considera que a adoção dessas práticas não deve ser apenas uma tendência, mas uma necessidade urgente.
“Não é apenas um detalhezinho, não é só o design. Estamos falando de um desenho de aplicativo, software e sistema voltados para a sustentabilidade. É algo bastante importante diante do contexto climático que estamos vivendo”, afirma.
Marco Konopacki, hackerativista e doutor em ciência política na área de inovações democráticas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), avalia as técnicas de software verde como passos “louváveis” para conscientizar sobre o uso dos recursos finitos do planeta.
“Se aplicadas em larga escala, o impacto sobre os recursos é ainda mais relevante”, afirma.
Apesar dos códigos verdes ajudarem a mitigar o impacto ambiental, isoladamente, são insuficientes para enfrentar o problema, de acordo com Costa, da UFPA. Para ela, a responsabilidade deve ser compartilhada entre empresas e consumidores.
“Esse consumo digital excessivo é um fenômeno global. As pessoas precisam repensar os hábitos e se conscientizar do impacto que geram. No caso das empresas, se não houver política pública e fiscalização, as práticas sustentáveis não vão ser priorizadas, porque é muito confortável para elas se manterem do que jeito que estão”, diz.
Costa acredita que políticas públicas são necessárias para garantir mudanças reais, especialmente em regiões onde o mercado e os investidores não atuam com tanta força, como na Amazônia. “Esses investidores não chegam nesses lugares”, diz, referindo-se à ausência de fiscalização e incentivos nas áreas remotas.
Ela observa ainda que, no Brasil, muitas práticas de ESG ainda são “marketagem”, onde empresas divulgam ações sustentáveis mais para a imagem pública do que por compromisso ambiental, prática conhecida como “greenwashing”.
Konopacki defende ainda a implementação de incentivos tanto positivos, que recompensam práticas sustentáveis adotadas pelas empresas, e negativos, como multas e penalizações para as que não se adequam às práticas.