O cérebro humano, cheio de dobras e com centenas de estruturas, bilhões de neurônios, trilhões de quilômetros de cabos e quatrilhões de sinapses, é no começo um mero canudo de células. O processo pelo qual uma coisa se transforma na outra se chama desenvolvimento, e estudar como aquele canudo vira cérebro é a única maneira de entender por que as partes do cérebro são como são.
Por que se dar ao trabalho, você pergunta? Se não lhe bastam a admiração com a ideia de que o cérebro que lhe permite ler este texto foi um dia apenas um canudo de células, mais a satisfação em pensar que entender o processo envolvido está ao nosso alcance, pense em todos os problemas de saúde que decorrem de alterações no desenvolvimento do cérebro.
A lista inclui epilepsia, autismo, deficiência intelectual, tumores e toda uma série de síndromes genéticas. Exatamente como um carro em pane, é preciso entender como o cérebro adulto é construído antes de poder sequer tentar consertá-lo.
Um mapa do cérebro humano, como um mapa de uma cidade, representa lado a lado em uma superfície plana as partes que se encontram lado a lado no mundo. Como o cérebro é tridimensional, mapeá-lo requer não um único mapa, mas uma pilha deles: um atlas. Navegar um atlas do cérebro é explorar seus caminhos.
Para acompanhar o processo de transformação do canudo em cérebro, então, é preciso ainda mais do que um atlas: é preciso toda uma série de atlas que mostrem, cada um deles, mapas de todas as células em todas as estruturas em todas as partes de cada canudo em transformação. Sem isso, sem chance de ligar os pontos e entender a lógica subjacente à complexidade daquilo que um dia começou canudo —e aliás nunca deixou de ser.
O problema é que a tarefa, monumental, é demais para laboratórios individuais e para os esquemas usuais de financiamento competitivo. Um atlas digital do cérebro humano adulto, acessível gratuitamente, foi publicado em 2016 no periódico do qual eu agora sou editora-chefe, o Journal of Comparative Neurology.
A empreitada foi possível graças à doação por Paul Allen, cofundador da Microsoft, de US$ 100 milhões em 2003, mais outros US$ 300 milhões em 2012, para o que se tornou o Allen Institute for Brain Science, em Seattle, nos EUA, um país que ainda tem tradição em investimento filantrópico em ciência.
Por isso ninguém esperava que um feito ainda maior —uma série de cinco atlas do cérebro humano durante o segundo semestre de gestação— viesse da Índia. É um país sem qualquer tradição em neurociência e que vem, como o Brasil, exportando jovens para aprender alhures —e, também como o Brasil, tentando repatriá-los já como talentos formados. Mas sem dinheiro não há ciência, e sem visão de longo prazo também não.
Eis que um engenheiro elétrico do Instituto Indiano de Tecnologia de Madras, Mohan Sivaprakasam, ousou pensar grande; o Ministério de Ciência e Tecnologia e seus consultores apoiaram e financiaram a ideia, sem qualquer processo competitivo; um ex-aluno agora bilionário doou outros tantos, garantindo a continuidade do projeto; e uma neurocientista, Richa Verma, foi repatriada da Austrália para liderar o projeto.
Dois anos e um décimo do custo do antecessor estadunidense depois, estou em Madras para anunciar a publicação pelo Sudha Golapakrishnan Brain Centre dos cinco atlas indianos no mesmo periódico, agora sob minha direção. Dá gosto de ver.
Ah se o Brasil fizesse igual…
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