O Brasil passa por uma grande transição epidemiológica: aos poucos, o câncer ganha terreno, se torna a principal causa de morte em muitas cidades do país e deixa para trás as doenças cardiovasculares, que ficaram no topo desse ranking nas últimas décadas.
Esse fenômeno foi captado por um estudo realizado por diversas instituições nacionais e internacionais, publicado em novembro no periódico científico The Lancet – Regional Health Americas.
Os autores calculam que, no ano 2000, o câncer só era a causa número um de óbitos em 7% dos municípios do país —e não ficava em primeiro lugar em nenhum dos estados.
Já em 2019, esse cenário se modificou. As mortes por causa de tumores cresceram em 15 estados e viraram o principal motivo das mortes em 13% das cidades —quase o dobro do observado duas décadas atrás.
Segundo a pesquisa, a tendência é que esses números continuem a aumentar, até que o câncer ultrapasse as doenças cardíacas em todo o território nacional.
Essa transição já foi observada em países mais ricos nos últimos anos, e agora passa a acontecer também nas nações de renda média, como é o caso do Brasil.
Os autores do estudo esperam que os dados e a análise ajudem a melhorar os serviços de saúde no Brasil.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também chamam a atenção para a necessidade de melhorar e ampliar as campanhas de prevenção e outras políticas públicas para lidar com esse novo cenário.
Como a pesquisa foi feita
O trabalho envolveu investigadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA), da Universidade Autônoma do Chile, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, da Fundação Getúlio Vargas, do A.C. Camargo Cancer Center e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), entre outras instituições.
Eles compilaram dados dos 5,57 mil municípios brasileiros disponíveis no SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), vinculado ao Ministério da Saúde.
Esse enorme registro público traz detalhes anonimizados sobre quais foram as causas de cada óbito notificado nos cartórios espalhados pelo país.
A partir disso, os autores do estudo calcularam as taxas de mortalidade por doenças cardiovasculares (como infarto, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca…) e por câncer para cada ano, no período que vai de 2000 a 2019.
Eles também criaram uma proporção da taxa de mortalidade (mortality rate ratio, em inglês), para determinar se, em cada município, o que mais matava ainda eram os problemas ligados ao coração e aos vasos sanguíneos ou se a tal transição epidemiológica já havia ocorrido —e os tumores tomaram a dianteira.
A partir desse sistema, os pesquisadores puderam observar que a taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares caiu em 25 das 27 unidades da federação (26 Estados mais o Distrito Federal). No mesmo período, a mortalidade por câncer subiu em 15 deles.
“Enquanto que, no ano 2000, a mortalidade por câncer era menor que a de por doenças cardiovasculares em todos os estados e apenas era superior em 7% das cidades, essa distância foi reduzida consideravelmente em 2019, com 13% dos municípios com maior mortalidade por câncer do que por causas cardiovasculares”, descrevem os autores.
Em números absolutos, o câncer era a principal causa de morte em 366 cidades brasileiras no início do século. Esse número saltou para 727 em menos de duas décadas.
Leandro Rezende, um dos autores do estudo recém-publicado, destaca que países de renda alta já completaram essa transição epidemiológica —e o mesmo processo começa a ganhar fôlego nos países de renda média, como é o caso do Brasil.
“Esperamos que os dados ajudem a entender as nuances e as particularidades do nosso país e possam ser úteis para os gestores de saúde”, pontua ele.
Políticas públicas que fazem a diferença
Mas o que explica essa mudança? Que fatores ajudam a entender essa transição nas causas de morte?
Para Rezende, que é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), duas políticas públicas criadas nas últimas décadas foram essenciais para isso.
“Em primeiro lugar, a queda do tabagismo foi a grande contribuidora para a redução das mortes por doenças cardiovasculares no Brasil”, resume ele.
Desde a década de 1980, diversos governos criaram leis para proibir o fumo em locais fechados, aumentaram os impostos sobre os cigarros e criaram uma forte regulação sobre a rotulagem, a venda e a publicidade desses produtos.
“Tudo isso reduziu o tabagismo, e nós agora colhemos os frutos dessas medidas, com muitas mortes evitadas”, complementa o pesquisador.
Para se ter uma ideia, praticamente um quarto dos brasileiros fumava nos anos 1980. Hoje em dia, esse número fica na casa dos 10%.
Mas o cigarro também não está relacionado ao câncer? Por que essas políticas não resultaram numa diminuição de tumores de pulmão, bexiga, garganta, entre outros?
A questão aqui está no tempo. “A redução do tabagismo deve, sim, levar a uma queda na morte por vários tipos de câncer, mas isso só será possível de observar nos próximos anos”, responde Rezende.
“A latência [o período para que certas doenças apareçam] varia muito. Ele costuma ser mais rápido para os problemas cardiovasculares e levar algumas décadas quando o assunto é câncer”, explica o pesquisador.
Rezende lembra do segundo eixo de políticas públicas que, segundo as evidências, ajuda a entender o cenário captado na pesquisa.
“Também precisamos ressaltar a importância do Sistema Único de Saúde, o SUS, e o aumento da cobertura de prevenção primária por meio de programas como a Estratégia Saúde da Família, que permitem um controle mais efetivo de fatores de risco cardiovasculares, como diabetes e hipertensão“, pontua ele.
O médico José Humberto Fregnani, superintendente de Ensino, Pesquisa e Inovação no A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, que não esteve diretamente envolvido com o estudo, concorda com os pontos levantados por Rezende —e acrescenta um terceiro elemento ao debate.
“Também tivemos um grande desenvolvimento de medicações e tecnologias relacionadas às doenças cardiovasculares, que melhoram cada vez mais o tratamento”, avalia ele.
Na visão do especialista, o problema é que o câncer apresenta uma complexidade muito maior, tanto do ponto de vista da prevenção quanto das terapias.
“Quando pensamos na hipertensão, o diagnóstico é simples, feito no próprio consultório, onde já é possível lançar mão de uma série de medidas para ter um controle melhor”, compara ele.
“Agora, o câncer não é uma doença única. Há centenas de tipos, subtipos, fases e graus, para os quais existem métodos de detecção e tratamento absolutamente distintos”, destaca Fregnani.
Portanto, diante de um cenário em que o câncer se torna uma preocupação cada vez maior e logo deve assumir o topo do ranking de mortalidade no país todo, os desafios para lidar com esse novo cenário se multiplicam —e ficam também mais complexos.
Um desafio do tamanho do Brasil
A médica Anelisa Coutinho, presidente da Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), lembra que o mundo já registra em torno de 20 milhões de novos casos de câncer por ano.
“E as projeções apontam que, até 2050, esse número vai subir para 35 milhões, um incremento de pelo menos 70%”, calcula ela.
Na visão da médica, a boa notícia é que pelo menos um terço desses tumores podem ser evitados por meio de uma atenção maior aos chamados fatores de risco modificáveis.
Aqui entram questões do estilo de vida moderno, relacionados ao estresse, à qualidade da alimentação, à obesidade, ao tabagismo, ao sedentarismo…”, lista a oncologista.
Isso significa, portanto, que um em cada três casos de câncer podem ser evitados por meio de uma rotina saudável, que envolve manter-se no peso adequado, fazer atividade física, comer bem, não fumar, maneirar no álcool, etc.
Mas a especialista acredita que não basta pedir que as pessoas sejam mais saudáveis para resolver essa questão —ainda mais diante de um cenário em que as taxas de excesso de peso e obesidade estão em franco crescimento no país.
“A obesidade pode ser vista como uma epidemia. No começo do ano 2000, 10% dos brasileiros eram obesos”, contextualiza Rezende, da Unifesp.
“Hoje essa taxa está em 20% e há projeções de que chegará a 30% até 2030.”
Na visão de Coutinho, assim como aconteceu com o cigarro, é preciso pensar em algum tipo de regulamentação para alimentos prejudiciais.
“Poderíamos ter algum tipo de taxação para os produtos comprovadamente deletérios”, sugere ela.
Rezende concorda. “As pessoas não fumam, tomam álcool ou comem alimentos ultraprocessados simplesmente porque desejam. Há uma indústria bilionária por trás disso, com capacidade de maximizar as vendas e incentivar o consumo”, diz ele.
“É importante educar as pessoas, mas não dá para pensar em controle de álcool ou alimentos danosos à saúde sem uma discussão ampla sobre tributação, regulação do marketing e venda”, complementa o pesquisador.
Coutinho cita como um avanço recente a aprovação da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, sancionada pelo governo federal em dezembro de 2023 com quatro objetivos principais:
- diminuir a incidência dos diversos tipos de câncer;
- garantir o acesso adequado ao cuidado integral;
- contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos usuários diagnosticados com a doença;
- e reduzir a mortalidade e a incapacidade causadas pelos tumores.
“Agora, nós estamos, ao lado de diversos setores da sociedade, num esforço comum para encontrar os melhores caminhos e colocar essa lei na prática”, diz a presidente da Sboc.
Mas, como lembrado por Fregnani, é preciso pensar na diversidade do câncer —e como alguns tipos da doença exigem ações específicas.
O câncer de pele e o melanoma, por exemplo, demandam cuidados com a exposição solar e o uso de protetores de boa qualidade.
Já o tumor de colo do útero depende de um bom programa de rastreio (por meio do papanicolau e do teste de HPV) e das campanhas de vacinação contra o HPV.
O câncer colorretal pode ser detectado precocemente por meio de um exame de fezes feito com certa regularidade. E assim por diante.
A questão, portanto, é como implementar tantas medidas específicas, levando em conta as limitações financeiras e de recursos presentes em qualquer sistema de saúde.
Mas Coutinho lembra que algumas medidas gerais poderiam trazer benefícios amplos.
“Se pensarmos de forma inteligente em maneiras de estimular uma vida mais saudável, muitos casos de câncer poderiam ser prevenidos”, reforça ela.
Mesmo com todos esses cuidados, que evitariam cerca de 30% dos tumores, ainda é preciso pensar nas outras causas da doença, que envolvem idade, propensão genética e exposição a fatores que não podemos controlar diretamente (como poluição atmosférica ou agrotóxicos, por exemplo).
“E há ainda um grupo de tumores sobre os quais não fazemos a menor ideia de como surge ou os fatores de risco por trás deles”, observa Fregnani.
“Para completar, ainda temos um desafio mundial de como custear os tratamentos, que ficam cada vez mais caros”, acrescenta o especialista.
Um pódio em que ninguém quer subir
O médico Sérgio Montenegro, membro do Conselho Administrativo da SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), vê a transição epidemiológica como um processo natural —ainda que infarto, AVC e outras enfermidades que envolvem coração e vasos sanguíneos continuem como a causa número um de mortes no país.
“Há algumas décadas, as doenças infecciosas eram a principal causa de mortalidade no Brasil. À medida que as controlamos, as doenças crônicas degenerativas, especialmente aquelas ligadas ao coração, apareceram mais”, contextualiza Montenegro.
“Mas trabalhamos muito para combater isso e reduzir esses números, até porque ninguém quer ser esse campeão, esse líder na taxa de mortalidade.”
Montenegro destaca que muitos fatores de risco para doença cardiovascular —obesidade, tabagismo, dieta inadequada, sedentarismo…— também estão relacionados ao desenvolvimento de tumores.
Portanto, trabalhar essas questões do estilo de vida tem um benefício duplo e pode trazer reduções em casos e mortes tanto para as enfermidades cardíacas quanto para alguns tipos de câncer.
O médico entende que a obesidade representa a principal ameaça às conquistas recentes quando o assunto é o coração.
“Já vimos reduções semelhantes na mortalidade cardiovascular em outros países, mas os números voltaram a subir depois de um tempo”, destaca ele.
“Ou seja, as quedas recentes não permitem baixar a guarda. Precisamos cuidar da obesidade, até porque ela traz consigo problemas como diabetes, hipertensão e colesterol alto, que aumentam o risco cardiovascular”, avisa Montenegro.
Por fim, Rezende destaca que o desenvolvimento econômico dos municípios apareceu como um fator relevante na análise.
“As cidades de maior renda estão mais adiantadas na transição epidemiológica em relação aos municípios de menor renda”, compara ele.
Segundo o especialista, há diversas explicações possíveis para essa diferença.
“Não podemos ignorar aqui os chamados determinantes sociais da saúde. A menor renda está associada à dificuldade de acesso ao diagnóstico e ao tratamento adequados. Nesses locais, há também maior exposição ao cigarro e aos alimentos ultraprocessados“, avalia ele.
“Em suma, isso significa que essas regiões se beneficiariam muito de políticas públicas que aumentassem o acesso ao diagnóstico e ao tratamento, com quedas ainda mais acentuadas na mortalidade por doenças cardiovasculares”, antevê o pesquisador.
O próprio artigo recém-publicado, inclusive, reforça “a necessidade urgente de o Brasil modificar suas estratégias de saúde pública, enfatizando a prevenção e o controle do câncer sem negligenciar as doenças cardiovasculares”.
“E as disparidades socioeconômicas evidentes no ritmo de transição entre os municípios ressaltam a importância de intervenções personalizadas”, concluem os autores.
O texto foi publicado originalmente aqui.