O Ministério da Saúde vai ampliar de 22 para 194 o número de serviços voltados para a população trans no SUS (Sistema Único de Saúde) em todo país, com investimentos estimados em quase R$ 443 milhões até 2028. O número não inclui serviços atualmente em funcionamento por iniciativa de estados e municípios.
Publicada nesta quinta (12), a portaria que institui o Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (Paes Pop Trans) também prevê aumento de 14 para 34 do total de procedimentos na tabela do SUS e a criação de linhas de cuidado para crianças e adolescentes transgênero.
Com a iniciativa, a idade mínima para realização de procedimentos cirúrgicos, como a mastectomia, será reduzida de 21 para 18 anos. Já o uso de hormônios, até então restrito a pessoas maiores de idade, passa a ser permitido para adolescentes a partir dos 16 anos, com autorização dos pais.
A redução das idades mínimas para cirurgias e hormonização vai em linha com a resolução 2.265/2019 do CFM (Conselho Federal de Medicina), que estabelece os padrões de conduta ética no atendimento de pacientes trans. Boa parte dos serviços de saúde do país já vinha praticando esses limites de idade com base nessa resolução.
Os ambulatórios habilitados poderão administrar bloqueadores de puberdade para crianças com incongruência de gênero em estágio de Tanner 2, ou seja, a partir dos primeiros sinais da puberdade.
Esses medicamentos impedem o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários, como o crescimento das mamas e o início da menstruação. Também são utilizados para retardar os efeitos de hormônios sexuais em crianças diagnosticadas com puberdade precoce.
O programa é resultado de um grupo de trabalho que contou com a participação de profissionais da saúde, pesquisadores e entidades da sociedade civil e foi pactuado com gestores de saúde dos estados e municípios.
De acordo com Flavia do Bonsucesso Teixeira, diretora do programa, a iniciativa parte da perspectiva do direito à saúde como direito humano e propõe o cuidado integral da população trans em todo o seu ciclo de vida.
“É um cuidado que precisa envolver as famílias e comunidades, compreendendo o quanto a transfobia impacta a vida e a saúde das pessoas trans”, afirma Teixeira em entrevista à Folha por telefone.
Ela diz que a portaria busca preencher lacunas existentes no atendimento dessa população. “Nós temos pessoas trans que estão na fila de espera para a realização de uma cirurgia de adequação genital há mais de 15 anos.”
A portaria do Ministério da Saúde avança em relação à resolução do CFM e, segundo médicos ouvidos pela Folha, deve enfrentar resistência do conselho em algumas questões.
Um dos principais pontos é a realização do bloqueio puberal para pacientes trans. O CFM determina que ele ocorra exclusivamente em caráter experimental em protocolos de pesquisa. No programa do ministério, não há essa exigência.
Atualmente, o bloqueio puberal vem sendo ofertado em um número limitado de hospitais universitários do país como o Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), na capital paulista.
Teixeira afirma que a pasta segue evidências científicas e protocolos internacionais em relação ao cuidado de pessoas trans, mas não se baseia no CFM.
“Não existe processo de hormonização usada para crianças. Isso é um absurdo. Não existem cirurgias, nenhuma possibilidade de fazer intervenção física no corpo de crianças”, diz.
“O que se faz é o bloqueio hormonal, que é pedir ao corpo para ter um tempo enquanto a pessoa tem condições de pensar sobre si e de fazer o seu acompanhamento. A família faz esse preparo junto, e aí, se firmando essa demanda pela transição, a partir dos 16 anos é que se começa a hormonização cruzada.”
O CFM também discute internamente a revisão da sua resolução, mas não há ainda data para o assunto ser levado ao plenário. Existe uma forte pressão de grupos conservadores para que a norma seja mais restrita, proibindo, por exemplo, o bloqueio hormonal na puberdade e a hormonização antes dos 18 anos.
Além do CFM, o programa também pode gerar atritos entre o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva (PT) e o Congresso em um momento de debate acalorado sobre o controle de gastos públicos.
A portaria prevê despesas de R$ 68 milhões em 2025, que devem aumentar gradualmente até R$ 152 milhões em 2028. No acumulado, o impacto orçamentário soma R$ 442,99 milhões ao longo dos próximos quatro anos.
Teixeira afirma que esses valores representam “uma gota no oceano” do orçamento do Ministério da Saúde. O orçamento atualizado da pasta para 2024 é de R$ 236,3 bilhões.
O Paes Pop Trans é anunciado em um momento de ofensiva legislativa contra os direitos das pessoas trans no Brasil.
Levantamento da Folha mostrou que ao menos 292 PLs antitrans foram protocolados nas esferas federal, estadual e municipal em 2023; destes, 47 buscam proibir bloqueio puberal e hormonização para menores de 18 anos. Já há pelo menos 77 leis antitrans em vigor no país nas esferas municipal e estadual.
Em São Paulo, mesmo seguindo as regras do CFM, o ambulatório do HC voltado à população trans foi alvo de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Assembleia Legislativa paulista no ano passado que investigou os tratamentos oferecidos a crianças e adolescentes trans.
Também há reveses de políticas de saúde voltadas à população transgênero ao redor do mundo. Em março deste ano, o Reino Unido interrompeu o uso rotineiro de bloqueadores da puberdade no NHS, o serviço nacional de saúde britânico.
A retórica antitrans também ganha força na Argentina, onde o presidente ultraliberal Javier Milei vem revertendo medidas de inclusão de gênero implementadas em governos anteriores.
Nos Estados Unidos, ao menos 20 estados, a maioria liderados por republicanos, adotaram nos últimos anos medidas para restringir o acesso de crianças e adolescentes a cuidados relacionados à transgeneridade. O presidente eleito, Donald Trump, prometeu pôr fim a incentivos federais para esses serviços.
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.