Casos recentes de violência policial em São Paulo chocaram o país. A exibição, pela mídia, de gravações mostrando o assassinato de um homem alvejado com 11 tiros após furtar sabão de um mercado, de um suspeito sendo jogado de uma ponte por um policial militar e de um policial aposentado perseguindo e atirando em crianças e adolescentes, entre outras situações, exasperou o sentimento de medo e desproteção da população. Esses eventos expõem um problema estrutural de longa data e fortalecem a urgência de uma discussão sobre o papel das polícias em democracias.
Os homicídios no Brasil mantêm-se em uma espiral preocupante, colocando o país entre os mais violentos do mundo, com cerca de 50 mil homicídios intencionais anuais. Por si só, esses números já apontam para uma crise que, ainda, é potencializada pelo aumento da violência do próprio Estado.
Vários fatores se somam para levar ao atual estado de coisas. Como coronel da reserva da Polícia Militar, que atuou como chefe do Estado-Maior da Polícia Militar do Rio de Janeiro e coordenador das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), antropólogo e doutor em ciências sociais, meu olhar sobre essa questão busca contribuir para o debate. Com experiência no Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, proponho uma reflexão baseada em evidências observadas tanto na prática quanto no estudo aprofundado da segurança pública.
A violência policial reflete, em parte, as marcas históricas da formação do Estado brasileiro e de um modelo de policiamento colonial militarizado. O surgimento das primeiras forças policiais profissionais remonta a 1808, quando d. João 6º, trazendo consigo o receituário institucional português, fundou aqui uma Intendência de Polícia. Nessa estrutura foi criada uma Guarda Real de Polícia, inspirada na Guarda Real de Polícia de Lisboa.
Sua missão, além de proteger os interesses da Coroa Portuguesa, era manter a ordem em uma sociedade escravocrata e muito desigual. O modelo foi intensificado, em 1831, com a extinção da Guarda Real de Polícia e a criação de um Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte. Altamente militarizada e com estrutura aquartelada, tinha como objetivo blindar a sensibilidade social de seus integrantes para impedir sua adesão aos movimentos populares.
Com o crescimento das populações nas províncias, o modelo dos Permanentes foi estendido a pedido dos presidentes locais. Em 1831, foi criada uma Guarda Nacional, que também atuava para proteger os interesses das elites agrárias.
A Proclamação da República, em 1889, trouxe os Corpos Militares de Polícia em substituição às estruturas anteriores. Embora tenham conferido aos Estados mais autonomia para organizarem suas próprias forças de segurança, a agenda elitista foi mantida.
Sobreposição de funções
A Constituição de 1946 introduziu pela primeira vez as forças estaduais com o nome de “polícias militares” no texto constitucional. Assim, de modo contraditório, pois, apesar do caráter mais democrático em relação às cartas anteriores, ela firmou o modelo de controle social dual – militar e policial – voltado às elites, com pouca ênfase na proteção cidadã.
Já durante a ditadura cívico-militar (1964-1985), o aparato policial brasileiro foi aperfeiçoado para atuar como braço operacional do regime nos Estados, reforçando o modelo militar colonial que tem como alvo prioritário o “inimigo interno”.
Em 1967, a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM) foi criada e subordinada ao Exército, ampliando o controle militar sobre essas instituições.
Sob o comando de oficiais do Exército, as polícias militares passaram a desempenhar papel central na repressão política e social, o que consolidou práticas violentas perpetuadas até hoje.
Nem a transição política e a Assembleia Constituinte de 1987 conseguiram promover uma transformação profunda nessas estruturas de nosso sistema de segurança pública. A chamada Constituição Cidadã, de 1988, nasceu órfã de um sistema cidadão de polícia e justiça criminal.
No Brasil, a divisão do trabalho policial estabelecida durante a ditadura cívico-militar criou uma sobreposição de funções que prejudica tanto a eficiência quanto a legitimidade das forças policiais. Aqui, uma das principais confusões está na percepção de que a segurança pública se resume à atuação policial, negligenciando que esta deve ser apenas parte de uma política mais ampla de segurança pública.
Temos um sistema distorcido em que a polícia militar deve atuar ostensivamente, com foco em prevenção, e a polícia civil concentra-se em investigações detalhadas para esclarecer crimes. Dentro dessa estrutura, a falta de integração entre as forças policiais e a resistência às reformas estruturais garantem a manutenção de práticas ineficazes e violentas.
Isso se agrava ainda mais à luz da crescente politização de segmentos das forças policiais, a exemplo do que pudemos observar na atuação ineficiente das forças de segurança na contenção da depredação dos Poderes em Brasília em janeiro de 2023.
Qual é a modernização necessária?
O modelo policial brasileiro carrega fortes traços autoritários, priorizando a repressão em detrimento da prevenção e da mediação de conflitos. Essa desconexão gera desconfiança e dificulta a construção de um ambiente de segurança cidadã.
Comum a todo o país, essa realidade é intensificada em São Paulo pela hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa que controla uma diversificada rede de atividades ilícitas e domina outras agências criminosas concorrentes.
A capacidade de infiltração do PCC cria um ambiente propício aos confrontos, em que a polícia frequentemente responde com repressão desmedida, voltando o seu poder de fogo quase sempre para os segmentos sociais, econômica e politicamente desfavorecidos. Trata-se de um sistema de segurança desigual e, muitas vezes, providencialmente míope.
Por sua vez, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao declarar apoio à conduta do secretário de Segurança e das forças policiais, valida práticas que reforçam a impunidade e alimentam a desconfiança da população. É uma postura que ratifica discursos populistas, racistas e elitistas, conflitantes com uma polícia verdadeiramente profissional e ancorada nos valores republicanos.
Aliado à falta de uma estratégia integrada de segurança pública, esse contexto realimenta o ciclo de violência. Isso evidencia que nem mesmo a maior e mais avançada polícia do país prescinde de uma ruptura estrutural que propicie, inclusive, uma mudança de mentalidade.
Todo esse cenário reforça a necessidade de uma discussão mais abrangente sobre o papel do Estado na garantia de uma segurança cidadã, que rechace a força bruta como resposta predominante aos problemas de uma ordem pública iníqua.
Essa transformação exige investimento em tecnologias, formação cidadã, autonomia investigativa e também melhores condições para os trabalhadores policiais. Porém, a construção de uma segurança cidadã vai além da modernização da polícia e envolve uma integração mais abrangente de setores do Estado, como educação e assistência social. Essa visão sistêmica é essencial para enfrentarmos os determinantes da violência e promovermos um modelo sustentável.
Uma verdadeira modernização das polícias é condição sine qua non para se romper com a herança colonialista e autoritária e buscar um sistema policial que combata o crime com competência, mas que também promova a segurança como direito dentro de uma perspectiva verdadeiramente republicana.