O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve publicar até 24 de dezembro um decreto “corretivo” sobre armas de fogo para substituir a norma atual, que vigora desde julho de 2023. Por pressão de senadores e deputados da bancada da segurança, o governo reabriu a mesa de negociações sobre o tema, mas as mudanças que vieram a público não agradaram ao setor de armas, que entende que o novo decreto continuará sendo restritivo.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, destacou, em passagem pelo Congresso no começo do mês, que pelo menos três pontos do decreto atual (11.615/2023) devem ser ajustados após acordos com deputados e senadores ligados à bancada da segurança. São eles:
- Permitir que clubes de tiro já abertos e localizados em um raio de um quilômetro de estabelecimentos de ensino possam funcionar entre as 18h e as 22h durante a semana – o decreto atual proíbe totalmente o funcionamento perto destes locais. A abertura de novos clubes de tiro continuará proibida nas proximidades dos estabelecimentos de ensino;
- Habitualidade dos CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) será por grupo de armas e não mais por calibre (não se sabe ainda qual classificação será utilizada para definir os grupos);
- Calibre .22 LR (long rifle) deixará de ser restrito para armas longas e semiautomáticas.
Além destas propostas, Lewandowski também indicou que está sendo elaborado um “embrião” de um “estatuto dos atiradores esportivos”.
Para os deputados e especialistas que defendem o direito de acesso a armas, no entanto, o decreto “corretivo” não atende ao setor. “A única certeza que esse desgoverno dá é que hoje é ‘menos pior’ do que amanhã. Eles não têm o menor critério e as decisões são exclusivamente ideológicas, sem levar em conta qualquer amparo técnico nisso”, disse o deputado federal Marcos Pollon (PL-MS).
A posição é reforçada pelo advogado Fabrício Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes). “É a expressão máxima de que os atuais responsáveis por criar as regras sobre armas não entendem absolutamente nada de sua parte técnica, deixando-se levar por pura ideologia persecutória”, disse Rebelo.
O decreto atual é alvo de mais de 20 propostas no Congresso, que preveem sustar parcial ou integramente o seu conteúdo. Um dos projetos chegou a ser pautado no plenário do Senado em agosto, mas foi retirado após acordo com o governo Lula e diante da expectativa do novo decreto.
Preocupação com funcionamento de clubes de tiro próximos de escolas
O governo Lula tem enfatizado a posição contrária ao funcionamento de clubes de tiro perto de escolas. O argumento é de que educação e tiro “não combinam”.
“[Lula] não admitia que, durante o horário escolar, pudesse haver exercício de tiro, não só pelo exercício de tiro em si, mas pela movimentação das armas perto das escolas, o que poderia atrair assaltos”, disse o ministro Lewandowski durante audiência na Câmara dos Deputados no começo do mês.
Para quem defende o acesso a armas, porém, a restrição imposta pelo governo do PT é inconstitucional. Rebelo argumenta que não é competência do governo federal o estabelecimento de regras sobre a ocupação do solo nos municípios e isso inclui a localização desses estabelecimentos.
O advogado também entende que o tiro é uma modalidade esportiva e que, sendo assim, o Estado tem o dever de fomentar a sua prática. “É o oposto de criar restrições ao seu funcionamento. Para além disso, é uma perseguição ideológica e imotivada, pois não há um único caso sequer em que se possa correlacionar a prática do tiro desportivo e crimes havidos em escolas”, argumenta.
Ao indicar a permissão do funcionamento em horário restrito, o governo afirmou que haveria um acordo com o setor e com os deputados da bancada da segurança. No entanto, o deputado federal Paulo Bilynskyj (PL-SP) argumentou que esse entendimento se deu em razão da tentativa do governo de fechar os clubes de tiro por completo.
“Esse é um requisito imposto pelo governo Lula em troca do fechamento absoluto. Antes do fechamento absoluto de 95% dos clubes, nós aceitamos o funcionamento a partir das 18 horas durante a semana, deixando claro que essa é sim uma política desarmamentista”, disse o deputado durante audiência com a presença de Lewandowski na Câmara dos Deputados.
A localização dos clubes de tiro envolve ainda questionamentos sobre os termos adotados pelo governo para as restrições. O decreto atual usa o termo “estabelecimentos de ensino”, o que gera questionamentos sobre a regra valer apenas para escolas públicas e privadas ou para qualquer tipo de local que seja voltado a educação.
“Nesse cenário, que já é absurdo, usar expressões abertas, passíveis de interpretações subjetivas, é a receita para que as confusões e questionamentos jurídicos prossigam. Se o governo quer evitar clubes perto de escolas, é preciso deixar claro a que tipo de instituição se refere”, pontuou Rebelo.
Até o momento, não se sabe se esse termo será alterado no decreto “corretivo”.
Decreto “corrige erro” sobre calibre .22, diz analista
O promotor de Justiça Luciano Lara, especialista em ciências criminais e criador do canal Bê-a-bá do Tiro, destaca que a restrição das armas de calibre .22 para armas longas é um dos maiores erros e problemas técnicos do atual decreto. Esse é um dos principais calibres usados em competições de tiro e tem menos energia do que o calibre .38 SPL, que não tem nenhuma restrição atualmente.
Para Lara, a restrição traz insegurança jurídica e confusão para aplicação da lei penal, já que uma mesma munição pode ser permitida ou restrita a depender da arma utilizada. Essa posição é reforçada pelo presidente executivo da Associação Brasileira de Importadores de Armas e Materiais Bélicos (Abiamb), Demétrius Oliveira. Ele afirma que a restrição de calibres como o .22 “não faz sentido” e reitera que armas deste calibre são as mais usadas em competições.
Para o deputado Marcos Pollon, as alterações apresentadas para este novo decreto marcam apenas o retorno ao “mínimo de normalidade”. “Eles inventam um problema que não existe, colocam um bode na sala e depois voltam atrás depois de algum tempo dessa aberração que eles mesmos inventaram e apresentam isso como se fosse uma boa notícia. Não, não é. É simplesmente as coisas voltando ao mínimo de normalidade”, criticou.
A questão da habitualidade também é criticada. Para o setor, a habitualidade deve ser medida pela participação do atleta, do atirador, em treinos ou competições. No entanto, a norma em vigor prevê que seja considerado o calibre utilizado. “Pela primeira vez na história, e sem qualquer justificativa a não ser prejudicar o atirador, criou-se a medição da habitualidade por calibre de arma registrada”, comentou o promotor Luciano Lara.
A habitualidade determina um número mínimo de vezes que o atirador desportivo deve comparecer em um clube de tiro para treinar e participar de competições, a fim de manter seu registro ativo. O governo Lula estipulou três níveis de atiradores, sendo cobrado do nível um, por exemplo, pelo menos 8 treinamentos ou competições no período de um ano. Para os demais, a presença precisa ser mais frequente.
No decreto “corretivo”, o ministro Lewandowski indicou que a medição passará a ser feita por grupos de armas. A especificação sobre qual grupo de armas deve ser usado ainda não está clara.
Setor de armas aponta prejuízos com decreto do governo Lula
Ao assumir o governo em 2023, Lula editou decretos desarmametistas, revogando as flexibilizações que haviam sido feitas nos governos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e Michel Temer (MDB). Na avaliação de entidades do setor, a política adotada por Lula trouxe insegurança jurídica e prejuízos financeiros.
De acordo com a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam) muitos estabelecimentos comerciais foram fechados e milhares de empregos perdidos desde janeiro de 2023.
“Estima-se que as restrições impostas impactam importantes aspectos, entre eles: cerca de 50% na redução dos empregos diretos, no faturamento do setor de armas e munições no mercado interno e no recolhimento de impostos, assim como uma possível redução de mais de R$ 600 milhões nos investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação no Brasil”, afirma a Aniam.
Diante das alterações antecipadas por Lewandowski, a Aniam entende que o texto trará melhorias, embora esteja “longe do ideal e adequado”.
“Destacamos que as restrições continuarão sendo significativas, o que continuará impactando negativamente a cadeia produtiva, o mercado legal e os cidadãos que adquirem esses produtos de forma responsável”, diz a nota enviada à Gazeta do Povo.
A associação afirma ainda não ter tido acesso à minuta do decreto “corretivo” de armas.
“A Aniam lamenta que o governo estude ajustes no decreto sem escutar o setor, assim como o fez na publicação do primeiro decreto [em janeiro de 2023]. É de praxe que os assuntos no Brasil sejam discutidos com os respectivos setores, porém, infelizmente, quando se trata de armas e munições, por ser um assunto ideológico, o setor é excluído pelo governo nas discussões”, complementa a associação na nota.