Flávio Dino, Cristiano Zanin e Paulo Gonet têm algo em comum. Além de terem sido indicados por Lula para os cargos de ministro do STF, no caso dos dois primeiros, e para o comando da PGR, no caso de Gonet, são todos católicos e fazem questão de assim se apresentarem. Durante suas sabatinas para confirmação nos cargos também ficou evidente, por exemplo, a posição conservadora dos três sobre questões como o aborto. Terrivelmente católicos, poderíamos dizer.
A preocupação com misturas promíscuas entre religião e Estado é legítima e compreensível. No entanto, é comum que essa preocupação se baseie em um equívoco histórico. Refiro-me à ideia, compartilhada por alguns analistas, de que somente nas últimas décadas o país começou a perder os contornos de um Estado laico devido à maior presença dos evangélicos na cena pública. Esse descuido ignora a longa história da presença católica nos espaços do Estado brasileiro e alimenta a percepção de que nossa laicidade teria sido mais vigorosa no passado.
Na verdade, jamais fomos plenamente laicos. Ou melhor, o que temos é uma laicidade à brasileira. Compreendê-la em seus próprios termos é essencial para aprimorar o debate sobre as relações entre religião e política.
De forma sucinta, a noção sociológica de laicidade refere-se à regulação institucional, política e jurídica das relações entre religião e política, igreja e Estado. Trata-se de um princípio que emancipa o Estado de interpretações religiosas sobre seu funcionamento e garante neutralidade confessional e isonomia no trato com as religiões.
Contudo, essa é apenas a descrição normativa da laicidade. Ela não considera que os Estados nacionais desenvolvem formas diversas de implementá-la. Apesar de constitucionalmente laico, o Brasil nunca esteve próximo de adotar o modelo de laicidade da tradição republicana francesa. Aqui, sempre tivemos uma espécie de quase laicidade.
A laicidade à brasileira raramente protegeu a educação pública da influência religiosa, frequentemente falhou na separação total entre Estado e religiões e limitou pouco a participação de líderes religiosos em assuntos públicos.
Formalmente, a separação entre igreja e Estado ocorreu com a Constituição de 1891, consolidando a República. No entanto, isso não eliminou os privilégios católicos nem encerrou a perseguição estatal a grupos religiosos.
Nas primeiras décadas do século 20, autoridades e intelectuais usaram o catolicismo como modelo de religião, classificando práticas espíritas e afro-brasileiras como inferiores. Mediunidade e outras formas de transe eram tratadas como doenças e frequentemente resultavam na internação dos praticantes em hospitais psiquiátricos ou em perseguições policiais, sob o pretexto de exercício ilegal da medicina. Tudo isso sob as leis de um Estado dito laico.
Até a década de 1940, as religiões afro-brasileiras enfrentaram intensa repressão policial e judicial, acusadas de feitiçaria e curandeirismo. Para evitar essa perseguição, líderes umbandistas registravam seus terreiros como tendas espíritas nos cartórios, escapando de serem fichados como “casas de macumba”.
A Igreja Católica, em absoluta sinergia com o Estado, também agiu para conter o crescimento de outras religiões. Em 1939, no início do Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas criou o Departamento de Defesa da Fé, destinado a apoiar a ação católica e resistir a grupos protestantes. Perseguições a evangélicos, com relatos de prisões, torturas, expulsões de cidades e até mortes, ocorreram pelo menos até a década de 1950.
Esse histórico se estende até os dias atuais, como demonstra o acordo firmado em 2009 entre o governo Lula e a Santa Sé, que garantiu privilégios fiscais e institucionais à Igreja Católica.
A laicidade à brasileira pode até ter se transformado ao longo das últimas décadas, com a presença de novos grupos religiosos na cena pública, mas seu principal beneficiário continua sendo a Igreja Católica.
Por aqui, o texto da lei ainda tem a letra do padre. E para não deixar dúvidas, o crucifixo continua no STF, de onde nunca saiu.