Para iniciar, um alerta é imprescindível: a reserva de vagas para o ingresso nas Universidades Federais é prioritariamente social, e não racial.
A legislação é muito clara: a população negra que fez o ensino médio em escolas privadas não tem direito a cotas. O critério racial presente na lei só ocorre como subcota, isto é, vem no interior da reserva geral para a escola pública e leva em conta os dados proporcionais do Censo Populacional do IBGE sobre cor, raça e etnia em cada estado da federação.
Se houver 100 vagas de ingresso em um curso, 50 serão destinadas a toda a população interessada e as outras 50 serão reservadas para pessoas que estudaram em escolas públicas, sejam elas brancas, indígenas, pardas, pretas ou quilombolas, com ou sem deficiência. Se o último Censo do IBGE apontar que 20% da população de um determinado estado é negra, então, 20% das vagas reservadas para estudantes de escolas públicas serão destinadas a candidatos negros: no caso, das 100 vagas, apenas 10 seriam reservadas para a população negra que estudou em escolas públicas.
Esclarecido esse ponto, vamos ao debate principal.
Em 2023, segundo o Censo Escolar do Inep, havia no 3º ano do ensino médio 2.053.636 estudantes matriculados, 14,1% em escolas privadas (288.953) e 85,9% em públicas (1.764.683). Já a sinopse da Educação Superior do mesmo ano mostra que existiam 658.273 vagas para o ingresso em Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), sendo mais de 90% (597.492) na modalidade presencial.
Nesse cenário, é possível verificar que, em 2023, os 288.953 potenciais concluintes do ensino médio privado puderam disputar “com folga” uma das 298.746 vagas presenciais de ampla concorrência das IFES. Do outro lado, a disputa foi expressivamente mais difícil, pois a metade das vagas, as reservadas (298.746), tinham como potenciais concorrentes os 1.764.683 concluintes do ensino médio público.
É evidente que a disputa pelo ingresso em um curso é diferente, a depender da carreira escolhida. No entanto, de forma geral, nota-se que as vagas de ampla concorrência das Universidades Federais, em 2023, seriam suficientes para acomodar todos os potenciais egressos do ensino privado, mas não os do público. As vagas reservadas são suficientes para atender menos de 17% dos potenciais concluintes do ensino médio público. Como consequência, vemos recair sobre esses estudantes o fenômeno da hiper-seletividade, que reduz chances de fazer avançar a trajetória acadêmica de qualidade e de alcançar mobilidade social por meio da educação.
O estudante de escola pública tem, historicamente, mais necessidades que o das privadas. É mais dependente de transporte público coletivo, mora tanto nas periferias das grandes cidades quanto nas localidades rurais, falta-lhe acesso à internet, a bibliotecas e equipamentos culturais, sofre potencialmente mais problemas nutricionais e tem pais com menor escolaridade. Nessas condições, pode-se dizer que demonstra maior “mérito” ao ingressar na educação superior pública do que um estudante de elite, que nunca enfrentou tais dificuldades, sempre frequentou as ditas melhores escolas e alcançou o mesmo resultado.
A verdade é que a lei de cotas tornou o ambiente das IFES mais diverso e plural, refletindo melhor a realidade brasileira. No entanto, como observou o escritor Jeferson Tenório ao analisar as manifestações preconceituosas dos estudantes da PUC-SP em novembro de 2024, a Lei de Cotas fez com que os estudantes brancos da classe média perdessem o que entendiam como “o seu direito” às vagas nas Universidades Federais, ou, como disse o escritor, eles perderam o privilégio de ser medíocres.
A guisa de concluir, àqueles que insistem em afirmar, repostando de forma acrítica, que as cotas pioraram a qualidade do ensino, ou que alunos cotistas têm piores desempenhos que seus colegas ingressantes pela ampla concorrência, sugere-se o acesso e a análise de dados educacionais e a leitura de diversos estudos publicados sobre o tema. De especial interesse, pode ser o Painel de Cotas do SoU_Ciência.
Embora algumas notas obtidas no Enem possam ser menores entre cotistas, especialmente no ingresso em cursos concorridos, os dados de desempenho acadêmico mostram que quase não há diferença entre cotistas e não cotistas quando caminham no curso. Necessário mesmo é que a sociedade brasileira supere o seu racismo e preconceito e se beneficie da diversidade, da potência e da criatividade intelectual de toda a sua população.
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