Tereza Gontijo tinha 22 anos quando começou a visitar crianças internadas na Santa Casa de Belo Horizonte (MG). Um palco diferente para a atriz formada no circo e na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Contratada pela associação Doutores da Alegria, a mineira atuou em pelo menos 12 hospitais públicos e periféricos —neste ano, foi a “besteirologista de plantão” no Hospital Geral do Grajaú, em São Paulo.
Testemunha de como o SUS (Sistema Único de Saúde) funciona há 16 anos, na pele da palhaça Guadalupe, a artista tem certeza de que tudo o que passa pela porta do hospital é reflexo dos dilemas sociais do país.
Como a família que evitava a alta do filho para que ele pudesse se alimentar melhor. Ou os inúmeros acidentes e doenças causados por condições precárias de moradia.
“A saúde pública é uma revelação crua da realidade. Aliciamento de menores, abuso sexual, violência doméstica contra mulheres e crianças, abandono de bebês e idosos, tentativas de autoextermínio. É nó que revira a tripa, de um jeito ou de outro, você vai ver”, relata Tereza Gontijo, 38, no livro “Do Riso ao Soro – Reflexões de uma Palhaça no Hospital e a Incrível Jornada dos Afetos”.
O livro de 200 páginas foi lançado em agosto deste ano, com versão no Kindle, e ainda sem previsão para sair no papel.
A publicação mescla sua história pessoal a casos hospitalares —dos mais doces aos mais lancinantes— sob a ótica de uma artista que é também musicista, diretora teatral e mãe do Bento, 8, e da Dora, 6. “A maternidade me trouxe uma revelação política, um tapa de consciência.”
Um deles foi a constatação da presença massiva de mulheres como acompanhantes em longas internações. “Não é por acaso. A surpresa é encontrar homens dedicados ao cuidado de uma criança. Eles têm carteira assinada, melhor remuneração”, diz Tereza, que usa a máscara do palhaço para trazer assuntos como esse à baila.
Outro dado escancarado para ela foi o recorte racial no SUS. Dados do Ministério da Saúde divulgados em 2023 apontam que pretos e pardos têm piores índices de saúde em comparação com brancos no país.
Isso inclui maiores taxas de mortalidade materna e infantil, prevalência de doenças crônicas e infecciosas, piores índices de violência, de acesso a atendimentos de saúde e de alimentação.
“Raça e cor determinam vivências díspares e condenam certos corpos a experiências de agudo sofrimento, enquanto a outros provê conforto e privilégio”, afirma a autora ao lembrar que há acomodações sem ventilação ou ar-condicionado em equipamentos públicos de saúde.
Outra camada que a maternidade trouxe à Tereza foi a sensibilidade para se colocar no lugar de outras mães. Como no caso narrado na abertura do livro.
“A sentença: é um óbito. Essa mãe acabou de perder a filha. Segundos depois reconheço não gritos, mas urros de dor, que cortam minha carne feito lâmina. (…) O hospital silencia e só ouve aquela mulher. ‘Eu quero a minha filha. Eu quero a minha filha’ .”
A cena corta para o banheiro onde Tereza se debulha em lágrimas. Em outra passagem, narra a interação com um menino de 3 anos, aparentemente saudável, no Hospital Santa Marcelina, na zona leste de São Paulo. Brincaram de heróis, voaram juntos e fizeram fotos com ele e a mãe.
“Ele teve uma piora naquele dia. Oito paradas cardiorrespiratórias. A notícia me rasgou a alma por aquela mãe. Se fosse comigo, morreria junto. Meu maior medo é morrer viva”, diz Tereza, cujo filho tinha a mesma idade do paciente naquela época.
E como hospital é lugar onde se nasce e onde se morre, também há alegria no virar das páginas do livro. Histórias que, segundo ela, dão a prova de que o afeto pode resgatar pessoas do limbo.
Como a música oferecida a uma pequena paciente que pouco respondia a estímulos —e, no dia seguinte, teve uma melhora repentina. Ou a interação através da janela do quarto de isolamento que acalmou o bebê de dez meses.
“O sistema é feito de regras rígidas que não têm alma. Só os seres humanos são capazes de injetar afeto e compaixão às frestas da burocracia”, escreve ela.
Segundo pesquisa realizada por Doutores da Alegria em parceria com o Instituto Fonte, 96% dos profissionais de saúde afirmam que as crianças se sentem mais à vontade no hospital após as intervenções dos palhaços. Além disso, 95% percebem que elas ficam mais ativas.
“Ainda vejo no humor essa lanterna que ilumina aspectos que a gente tende a esconder. Não aceitamos que a gente erra, chora, que somos vulneráveis e caímos em contradição”, diz Tereza sobre seu ofício como palhaça.
Em um dos pontos altos do livro, ela descreve como foi estar do outro lado do jogo: virou acompanhante da própria filha durante cinco dias na UTI. Em um deles, tomada pelo cansaço e pela frustração de estar confinada, chorou de raiva ao tomar café em um copo de plástico mole.
“Não podia imaginar motivo mais banal para um choro. Mas a vivência do palhaço e da maternidade me permitiram experimentar o que é ser alguém falível.”
A associação Doutores da Alegria passa por uma de suas piores crises financeiras em 30 anos, com diminuição drástica nas doações realizadas via Lei Rouanet que a obrigou a cancelar 40% das atividades previstas para 2024.
O impacto foi sentido por Tereza Gontijo, que em seu livro mostra na prática como palhaços e palhaças podem tornar hospitais mais humanos. “É um trabalho desprovido de glamour, mas conectado a uma necessidade real, crua, latente.”
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.