Documentos da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) mostram que, desde o ano passado, há recomendação técnica de alteração nas regras de rescisões de planos de saúde coletivos de forma a mitigar práticas de seleção de risco, ou seja, de a operadora impedir a pessoa de adquirir um plano ou excluí-la devido a condições de saúde que demandam altos custos assistenciais.
Neste ano, as rescisões unilaterais de contratos coletivos estiveram no centro de debates na saúde suplementar, com aumento de queixas, de ações judiciais e de processos administrativos, além de diversas mobilizações de usuários, que levaram à aprovação de um pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), que está parado na Câmara dos Deputados.
Uma nota técnica, assinada em 11 de dezembro de 2023, relata que a regulação atual permite que os contratos coletivos estejam sujeitos à rescisão unilateral imotivada por parte da operadora.
“A regra atual não é suficiente para limitar a exposição dos contratos com baixo poder de negociação a práticas de seleção de risco, à medida que é permitido à operadora rescindir tais contratos com base na análise individualizada do risco”, diz um trecho
Segundo a nota, o mecanismo de rescisão unilateral permite que contratos menos atrativos possam ser seletivamente removidos da carteira agrupada. Além disso, esses contratos de alta sinistralidade podem integrar a base de apuração do percentual de reajuste a ser aplicado no agrupamento.
“Dessa forma, o reajuste não refletiria a realidade dos contratos remanescentes, que sofreriam um percentual majorado (…) Portanto, entende-se que a rescisão unilateral imotivada por parte da operadora permite práticas de seleção de risco.”
Outra análise, uma avaliação de resultado regulatório, também de 2023, expõe a fragilidade das regras atuais das rescisões segundo as quais, ao fim dos 12 meses de cobertura inicial, o beneficiário não tem garantia de renovação do plano.
“Isso é especialmente problemático nas contratações de natureza individualizada por meio de produtos de contratação coletiva e em contratos coletivos de pequeno porte com baixo poder de negociação”, diz um trecho.
O documento sugere que, em uma eventual revisão sobre o tema, deva haver a diferenciação entre as duas partes da relação contratual, estabelecendo regras de rescisão mais restritivas para a operadora.
Reportagem da Folha mostrou que que milhares de contratos de crianças com autismo, doenças raras e paralisia cerebral, além de idosos e pessoas com doenças graves, foram suspensos neste ano, o que levou a um acordo entre as operadoras e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) —o que não impediu novos cancelamentos.
Para o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), que fez pressão para que esses pareceres técnicos se tornassem públicos, o que ocorreu somente no mês passado, os documentos contrariam posicionamentos da atual diretoria da agência, presidida por Paulo Rebello, que deixa o cargo no próximo dia 21. O presidente Lula (PT) bateu o martelo pela indicação de Wadih Damous, hoje Secretário Nacional do Consumidor, para o cargo.
“Em vários debates públicos, a diretoria vem negando a gravidade da rescisão unilateral de contratos e a possibilidade de a prática ser usada para seleção risco, ou seja, a expulsão de pessoas ou grupos consideradas indesejáveis para a lucratividade das empresas”, diz Lucas Andrietta, coordenador do programa de saúde do Idec.
Em entrevista ao canal Futuro da Saúde, em agosto último, Rebello negou a prática de seleção de risco. “Em hipótese alguma é permitido excluir qualquer beneficiário num grupo com base em sua condição de saúde. Todos esses contratos e rescisões que aparecem no noticiário não envolvem a exclusão pontual de um beneficiário ou de um grupo específico de pacientes”, disse.
Em nota, a ANS informa que não há contrariedade entre a diretoria atual e seu corpo técnico e que o documento faz parte de estudos estão sendo feitos pela agência e levaram à abertura de audiência pública e de tomada de subsídios para debater o tema.
“Esse e todos os documentos referentes à política e preços e reajuste em breve serão pautados para apreciação da diretoria colegiada, bem como a realização de uma consulta pública para oportunizar ampla participação social e de construção conjunta do aprimoramento dos normativos.”
A agência também reforça que “nunca se omitiu diante das denúncias de rescisão unilateral dos contratos, estando presente em todos os fóruns de discussão sobre o tema, como audiências públicas na Câmara dos Deputados, no Senado, entre outros”.
A ANS informa ainda que instaurou 12 processos administrativos contra as operadoras e lavrou oito autos de infração por rescisão indevida. “A ANS tem apurado todas as denúncias de cancelamentos de contratos e, se eventualmente for identificada a prática de seleção de riscos pelas operadoras, as medidas cabíveis serão tomadas pela reguladora.”
Para entidades de defesa do consumidor, os cancelamentos unilaterais praticados pelas operadoras representam uma prática abusiva, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, e precisa ser coibida pela agência reguladora. Várias decisões judiciais têm o mesmo entendimento.
Na avaliação do Idec e outras entidades de defesa do consumidor, há omissão regulatória da ANS. “Mesmo sabendo que os cancelamentos unilaterais são um problema, que afetam desproporcionalmente os consumidores, na sua condição de vulnerabilidade, opta por não promover avanços nesse sentido. Por muito tempo, sequer inseriu esse tema na sua própria agenda regulatória, ou seja, isso nunca foi um tema prioritário”, diz Andrietta.
Em relatório recente, a Defensoria Pública da União pediu à Câmara dos Deputados e ao Senado uma auditoria na ANS pelo Tribunal de Contas da União. O documento relata a situação dos cancelamentos unilaterais dos planos de saúde pelas operadoras e as deficiências da política fiscalizatória da agência.
Segundo Carolina Castelliano, defensora nacional de direitos humanos da Defensoria Pública da União, as repetidas violações dos direitos dos beneficiários e as providências ineficazes por parte das operadoras indicam possíveis falhas da ANS em seu dever regulador.