Nesta terça-feira (10), o libertário Javier Milei completa seu primeiro ano à frente da presidência da Argentina. Marcado por intensas transformações econômicas e sociais, o período trouxe resultados significativos, especialmente no controle da inflação, na recuperação da balança comercial e no ajuste das contas públicas. Apesar dos desafios sociais, Milei ainda conseguiu manter uma aprovação sólida entre a população, o que tem reforçado sua posição como líder de uma política econômica liberal sem precedentes no país.
“O governo de Milei começou com muitas dúvidas sobre sua efetividade por ter minoria legislativa. Mas a articulação política, a manutenção e o aumento do apoio popular granjearam a aprovação de medidas duras para combater a crise econômica renitente que assolava a vida dos argentinos. O saldo é, sem dúvida, extremamente positivo”, afirmou em entrevista à Gazeta do Povo Alexandre Pires, professor de Relações Internacionais do Ibmec-SP.
Um ponto de partida desafiador e uma recuperação profunda
Ao assumir o governo da Argentina em 10 de dezembro de 2023, Milei herdou uma economia devastada. A inflação alcançava 211% ao ano, a maior do mundo, enquanto a pobreza atingia mais de 40% da população e o Produto Interno Bruto (PIB) registrava uma queda de 1,6%. Além disso, a Argentina enfrentava um déficit comercial de quase US$ 7 bilhões e um risco-país de 1.923 pontos básicos. Esses números ainda eram um reflexo da gestão anterior, liderada pelo peronista Alberto Fernández (2019-2023), que intensificou a crise do país.
Logo no início de seu mandato, Milei adotou medidas drásticas para começar a conter a inflação, iniciando por uma desvalorização cambial que elevou o dólar oficial de 366 para 800 pesos em dezembro. Isso provocou um pico inflacionário de 25,5% no mês, mas foi seguido por uma desaceleração consistente. Em outubro deste ano, a inflação mensal caiu para 2,7%, um resultado considerado um “milagre econômico” por Milei. Embora a inflação anual ainda esteja em torno de 190% – mas bem menor do que fechou em 2023, com 211,4% – a confiança do mercado aumentou, com expectativas inflacionárias mais estáveis.
“Ele [Milei] herdou um legado difícil do governo anterior, em especial uma taxa de hiperinflação de incríveis 211% em 2023 – a maior do mundo, além de uma queda no PIB de 1,6% e uma alta taxa de pobreza, em torno de 45%”, disse em entrevista à Gazeta do Povo o professor de Relações Internacionais e reitor do Ibmec Brasília, Ricardo Caichiolo.
Caichiolo apontou três sucessos do governo Milei em seu primeiro ano liderando a Casa Rosada:
“O primeiro foi a queda significativa da inflação. Ainda durante sua campanha eleitoral, Milei prometeu fazer da luta contra a inflação sua principal prioridade e, de fato, no mês de outubro ela se reduziu a apenas 2,7%. Os preços dos alimentos em particular têm aumentado menos mais recentemente, enquanto há dificuldade ainda com relação aos preços de aluguéis e energia, que continuam a subir a uma taxa acima da média”, disse o analista.
“O segundo sucesso foi com relação à obtenção de superávits orçamentários, que têm sido possíveis por meio de medidas amargas e controversas: a interrupção de projetos de infraestrutura pública, aumentos dos salários e pensões no setor público abaixo da taxa de inflação – resultando em economias orçamentárias reais – redução gradual de benefícios sociais e subsídios, adiamento de pagamentos do governo central para as províncias, dentre uma série de outras ações. Uma última ação bem-sucedida foi a adoção de um programa de investimento no setor de energia e matérias-primas, como resultado de uma lei aprovada em junho deste ano, que previu um pacote de promoção de investimentos com concessões fiscais e facilitações para o comércio exterior, que já tem mostrado alguns resultados”, acrescentou Caichiolo.
Para Pires, a grande vitória do economista libertário neste primeiro ano de mandato está também no combate à inflação descontrolada.
“Há um forte processo de desinflação, que ainda precisa ser intensificado, o que exigirá reformas ainda mais profundas. Mas trazer em poucos meses a inflação mensal para a casa de 2% é a grande vitória [de Milei], combinada com um processo de saneamento do balanço do Banco Central argentino e uma melhora no balanço de pagamentos, que apresentava déficit crônico, com falta de dólares para custear as obrigações com o exterior [comerciais e financeiras]”, argumentou o analista.
Reestruturação do Estado
Junto à economia, um dos marcos deste primeiro ano da gestão Milei foi a reestruturação do aparato estatal, que foi o principal alvo da “motosserra” do presidente. Além da redução de ministérios – de 18 para 9 – várias instituições públicas foram extintas, como o Instituto Nacional contra a Discriminação (INADI), considerado pelo governo como um cabide de empregos ideológicos, e a agência estatal de notícias Télam. A privatização de empresas estatais como a Aerolíneas Argentinas também está em curso, seguindo a lógica de diminuir o peso do Estado na economia.
A abertura e desregulamentação econômica, impulsionada pela aprovação da Lei de Bases, para atrair investimentos estrangeiros, com destaque para a flexibilização do mercado de trabalho e a redução de impostos sobre empresas, foram outros marcos desse primeiro período de gestão libertária.
Com as medidas, o governo Milei obteve resultados positivos, como a redução do risco-país, que caiu, segundo a Bloomberg, de 1.907 pontos no começo deste ano para 772 pontos em novembro, o menor nível desde agosto de 2019. A brecha cambial, diferença entre o câmbio oficial e o paralelo, ficou abaixo de 5% em todas as variantes, segundo dados levantados pelo portal de notícias argentino Chequeado, sinalizando maior estabilidade financeira.
Investimentos em segurança pública e recuperação da ordem
Em relação à segurança pública, Milei implementou uma série de medidas para enfrentar o aumento da violência em regiões como Rosario, uma cidade assolada nos últimos anos pela violência do crime organizado e o narcotráfico.
Entre estas medidas, destaca-se a chamada Operação Bandeira, que aumentou a participação das forças federais nos controles de ordem pública, bem como a adoção do “Protocolo Antipiquete” da ministra da Segurança, Patricia Bullrich, utilizado para conter protestos e manifestações violentas convocadas por grupos e sindicatos de esquerda.
As taxas de homicídios em cidades como Rosario apresentaram uma redução significativa desde a implementação dessas medidas (mais de 60% de queda), o que é visto como um sinal positivo para a recuperação da ordem pública.
Compromisso nas relações internacionais
Na política externa, Milei reforçou alianças da Argentina com os Estados Unidos e Israel, priorizando o comércio e a cooperação em tecnologia e segurança. O presidente argentino, no entanto, não se afastou da China e do Brasil, liderado por Lula. Tanto a China comunista quanto Lula foram alvos de críticas de Milei durante a campanha presidencial de 2023. O presidente argentino tem reforçado a ideia de que tem “responsabilidade institucional” e que, por isso, mantém relações amistosas com ambos. Brasil e China são os maiores parceiros comerciais da Argentina.
Além das relações entre países, Milei também reforçou alianças com a iniciativa privada internacional, realizando visitas ao Vale do Silício nos EUA e reuniões estratégicas com o empresário Elon Musk, com quem tem visões de mundo bastante semelhantes.
Recessão, desemprego, mudança de mentalidade: os desafios que ainda precisam ser superados
Apesar dos avanços no controle inflacionário, a economia argentina ainda enfrenta uma recessão preocupante, com uma projeção de queda de 3,5% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2024, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). A redução da demanda interna, fruto do rigor fiscal, pode ter impactado setores como construção civil e manufatura. Segundo Caichiolo, o desemprego, embora não tenha disparado, também é uma das principais preocupações da população, de acordo com pesquisas recentes. Segundo dados oficiais, o desemprego no país chegou a 7,6% no segundo trimestre desse ano (1,1 milhão de pessoas), uma queda em relação ao primeiro trimestre, quando foi de 7,7%
“Os principais desafios têm relação com à política econômica. A recessão é bastante preocupante, pois a expectativa é de que o PIB caia novamente em torno de 4%. Se por um lado houve um avanço enorme no controle da inflação, isso se deveu também a uma forte restrição na demanda. Milei afirma que a recessão já terminaria neste mês de novembro, mas o empresariado e economistas argentinos estão bastante cautelosos. Outro desafio se refere às taxas de desemprego, que inclusive se tornaram a principal preocupação nas pesquisas realizadas mais recentemente no país”, disse Caichiolo.
Pires argumentou que a principal batalha de Milei não está apenas em implementar integralmente suas reformas econômicas, mas também em transformar a mentalidade coletiva do país.
“A cultura política argentina dos últimos cem anos se tornou altamente centrada no Estado e no intervencionismo econômico, na chave peronista-kirchenirista. A reversão da cultura política para uma crença maior nas liberdades individuais, especialmente, econômicas, foi e é o maior desafio do governo Milei”, disse o analista.
Um futuro promissor?
A popularidade de Milei permaneceu estável, apesar das difíceis reformas econômicas e cortes considerados impopulares, como a demissão de mais de 30 mil servidores públicos. Uma pesquisa realizada pela AtlasIntel com a Bloomberg entre 21 e 27 de novembro indicou que 46,9% dos argentinos aprovaram seu governo, enquanto 45,8% desaprovaram, um resultado dentro da margem de erro da pesquisa, de 2%. Um outro levantamento, divulgado neste domingo (8), realizado pela consultora Poliarquía e divulgado pelo jornal argentino La Nación, mostrou que Milei tem seu governo aprovado por 56% da população. Ainda de acordo com a pesquisa, ao contrário de seus antecessores, Alberto Fernández, Mauricio Macri e Cristina Kirchner, Milei conseguiu manter estável seu nível de aceitação no primeiro ano de mandato e ainda teve aumento de quatro pontos percentuais em relação a outubro, mês que teve a menor taxa de aprovação (52%). Este é o melhor primeiro novembro para um presidente argentino desde Néstor Kirchner (2003-2007).
O desempenho nos levantamentos pode indicar que uma parte significativa da população apoia as mudanças drásticas que o presidente propôs, apesar das dificuldades econômicas que muitos ainda enfrentam no dia a dia.
“A popularidade dele [Milei] se mantém regular porque ele tem tentado fazer aquilo que prometeu ao longo da eleição. Nesse caso os eleitores que o colocaram na Casa Rosada continuam o apoiando, ainda que, na prática, haja promessas que não serão cumpridas, como sua sinalização ao longo da campanha pelo fim do Banco Central e a dolarização do país”, analisou Caichiolo.
Com eleições ainda distantes, os analistas consultados pela Gazeta do Povo disseram que uma eventual reeleição de Milei está diretamente condicionada à melhora econômica e estabilidade na aprovação.
“Se a aprovação popular se mantiver estável e com tendência de alta, o governo Milei pode vir a se reeleger com maioria legislativa, permitindo reformas mais profundas, além de conseguir colher frutos de uma aliança econômica e (talvez militar) com o governo americano sob [Donald] Trump, para qual, hoje, Milei é o governante com mais proximidade ideológica e aproximação estratégica”, disse Pires.
“De fato a próxima eleição ainda está distante; entretanto, se os índices inflacionários continuarem baixando e o nível de desemprego for controlado, há boas chance de Milei conseguir a reeleição”, analisou Caichiolo.
Se Milei conseguirá consolidar seu legado ou enfrentará resistência popular nos próximos anos, o tempo dirá. Por ora, o libertário marca seu primeiro ano de gestão como um divisor de águas na história econômica da Argentina, ajudando a revigorar as esperanças de uma nação que estava literalmente no fundo do poço.