O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) exigiu acesso a prontuários sigilosos de pacientes de aborto legal no Hospital das Clínicas de Botucatu, no interior de São Paulo. O pedido ocorreu na última terça-feira (3), quando um médico fiscal do conselho foi até o local.
É ao menos a segunda vez que o conselho médico faz o pedido ao estabelecimento de saúde. No início de novembro, o hospital recebeu um ofício do Cremesp pedindo acesso aos prontuários. Na nova visita, o requerimento foi reiterado pelo fiscal.
A ação ocorreu cerca de uma semana após o órgão realizar fiscalização semelhantes no Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Na ocasião, o conselho pediu acesso a todos os prontuários de mulheres que realizaram o aborto legal nos últimos 12 meses, conforme revelado pela Folha.
A ação fez com que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes mandasse intimar o presidente do Cremesp, para que explicasse as circunstâncias que justificariam a requisição excepcional do acesso aos prontuários das pacientes.
O ministro também pediu a intimação dos governos do estado e do município de São Paulo para informarem se os prontuários tinham sido entregues ao conselho, além de proibir o fornecimento dos dados.
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo afirma que recebeu a notificação da decisão e que estuda o assunto.
Diz ainda que “previsões legais e normativas federais vigentes relativas à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, visando garantir a segurança, o acolhimento e o atendimento humanizado às mulheres”.
Segundo o Cremesp, as fiscalizações fazem parte da “Operação Avaliação do Cumprimento do Programa Aborto Legal” e que todos os estabelecimentos de saúde podem ser alvos da ação. Segundo o órgão, a fiscalização “visa apurar, de forma integral, a regularidade da execução deste programa, verificando tanto o cumprimento quanto o eventual descumprimento das normas estabelecidas”.
No Brasil, a interrupção de gestação é descriminalizada em caso de estupro, risco de morte à mãe ou de fetos com anencefalia.
“É imperativo destacar que qualquer tentativa de obstrução ou bloqueio às etapas de fiscalização será tratada como suspeita grave e poderá levar à instauração de procedimentos éticos e legais contra os responsáveis. O Cremesp não medirá esforços para denunciar e processar, nas esferas competentes, aqueles que tentarem impedir o cumprimento de suas atribuições legais”, diz o conselho.
A direção do Hospital das Clínicas de Botucatu não quis se pronunciar. Assim como na Unicamp, a instituição de saúde é vinculada a uma universidade estadual, a Unesp (Universidade Estadual Paulista). Com quase seis décadas de existência, o local conta com centros especializados que atendem a pacientes encaminhados de 68 municípios do interior paulista, segundo o hospital.
Ofensiva contra o aborto legal
No início desse ano, o Cremesp encabeçou uma ofensiva contra médicos que faziam aborto legal no Hospital e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, cujo serviço foi encerrado na unidade pela gestão Ricardo Nunes (MDB) em dezembro de 2023 e, até hoje, não foi retomado.
Em novembro deste ano, o MPF (Ministério Público Federal) abriu uma investigação para apurar a conduta do Cremesp contra profissionais do Cachoeirinha. Segundo o órgão federal, ao menos três deles são vítimas de perseguição do conselho, o que gerou uma pena cautelar do conselho. O inquérito está em andamento.
Reportagem da Folha mostrou que integrantes do conselho acusaram as médicas que fizeram procedimentos no local de praticar tortura, tratamento cruel, negligência, imprudência e até mesmo o assassinato de fetos, embora as interrupções realizadas estivessem dentro da lei.
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