“Nós podemos entender que aquilo que aquele policial fez em São Paulo na ponte, que, desde ontem, está sendo repetido nas televisões brasileiras, nos telejornais, é uma liberdade de expressão?”, questionou o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o caso ocorrido no bairro Cidade Ademar na semana passada, em sessão do julgamento sobre o Marco Civil da Internet.
Falas recentes de ministros do STF têm exposto uma tendência na elite do Judiciário brasileiro de relativização, confusão e descaso em relação a princípios da Constituição e da democracia, como a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar.
A tendência não é nova e ganha força há pelo menos quatro anos, mas, nos últimos dias, declarações que viralizaram nas redes sociais expuseram o problema.
Em uma audiência na Câmara no dia 3, o ex-ministro do STF e atual ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski defendeu que a imunidade parlamentar não deveria proteger deputados em casos de crimes contra a honra.
“Se, da tribuna, um deputado comete crime contra a honra, seja contra colega ou qualquer cidadão, ele não tem imunidade. Até porque isso inviabilizaria a convivência no Parlamento. O Supremo Tribunal Federal já consolidou essa jurisprudência, e os inquéritos da PF consideram esse entendimento”, disse o ministro.
A afirmação contraria jurisprudência consolidada do STF que, desde 1992, garante a inviolabilidade dos congressistas em discursos proferidos na tribuna da Câmara ou do Senado. A imunidade parlamentar tem como objetivo justamente o de assegurar o pleno exercício do mandato, sem temor de represálias civis ou criminais, especialmente no contexto de críticas e denúncias contra agentes públicos. A declaração de Lewandowski revela, contudo, que uma releitura desse princípio está em curso no Judiciário brasileiro.
O antecessor de Lewandowski no Ministério da Justiça, Flávio Dino, já havia dito em 2023, antes de ocupar a vaga do próprio Lewandowski no STF: “Lembro que não há imunidade parlamentar para proteger canalhice”. A declaração foi feita via X, em referência a uma postagem do senador Sergio Moro (União-PR) que insinuava ligação entre o PT e o PCC.
Já como ministro do STF, em outubro deste ano, Dino acatou uma ação pedindo investigação contra os deputados Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB) por declarações feitas na tribuna da Câmara. Os parlamentares haviam criticado o delegado Fábio Shor e ministros do STF.
Para a consultora jurídica Katia Magalhães, “a atual redação do artigo 53 da Constituição não deixa margem a dúvida, ao amparar sob o manto da imunidade ‘quaisquer’ ideias e opiniões dos parlamentares”. “A natureza absoluta da imunidade resulta da interpretação literal da Constituição”, afirma.
Princípios do Direito são relativizados e varridos por ministros há anos, dizem juristas
Katia ressalta que a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão são somente dois de diversos princípios que vêm sendo relativizados por ministros do Supremo.
“A imunidade parlamentar está sendo tão relativizada quanto diversos princípios constitucionais que vêm sendo varridos por ministros do Supremo, pelo menos desde a instauração do inquérito das fake news, há cinco anos”, diz.
Para ela, a degradação de conceitos como a inércia do Judiciário, o princípio do juiz natural e a garantia de recorribilidade das decisões são exemplos de como elementos básicos do Direito têm sido abordados pela elite do Judiciário com pouco caso.
Entre esses conceitos, a liberdade de expressão é um alvo preferido dos magistrados. O ministro Alexandre de Moraes criou até um mantra para relativizar o alcance desse princípio, usado em diversas de suas decisões. Em junho de 2023, uma peça publicitária do Tribunal Superior Eleitoral foi na mesma linha: “Liberdade de expressão não é licença para espalhar mentira”, dizia a propaganda.
Esse entendimento destoa do conceito de liberdade de expressão que fundamenta democracias liberais. Em entrevista de 2023 à Gazeta do Povo, a jurista e professora americana Nadine Strossen, ex-presidente da American Civil Liberties Union (ACLU) e uma das mais célebres especialistas em liberdade de expressão no mundo, alertou sobre o perigo de um juiz arrogar-se o direito de definir o que é verdade e o que é mentira, como vem querendo fazer o Supremo em diversas ocasiões.
“Nenhuma definição legal, juiz ou júri podem distinguir precisamente entre verdades e mentiras em muitas situações. Então, temos que errar a favor de superproteger as mentiras, porque a alternativa seria subproteger a verdade, devido ao efeito inibidor de leis vagas e amplas contra conceitos tão manipuláveis como ‘fake news’ ou ‘desinformação'”, afirmou.
Para o jurista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, a motivação para a deturpação do conceito de liberdade de expressão por ministros do Supremo é “a defesa de uma democracia elitista, onde o povo e críticos da Corte não são bem-vindos”.
“Os ministros do STF enxergam a liberdade de expressão nas redes como um risco, um perigo, não entendem haver ali um valor a ser defendido. Como nas redes fala o povo, entendo que seja uma visão elitista. Como nas redes falam também os críticos da Corte, entendo que exista também uma intenção de controle político das redes”, comenta.
O efeito da relativização desse direito fundamental, segundo Marsiglia, é a insegurança jurídica. “Afeta toda a jurisprudência do país, de cima para baixo, a partir do STF; afeta a visão popular de que a liberdade de expressão é um princípio sagrado; e, por fim, afeta o parlamento, que passa notadamente a ter medo de falar. Com isso, o debate público, de forma geral, se torna amesquinhado, constrangido, asfixiado. Por óbvio, a segurança jurídica para a advocacia nesse cenário é zero, pois se inverte a lógica constitucional de que a liberdade é regra e a censura, exceção.”