A gaúcha Nicole Oliveira Bandeira, 23, sempre sonhou em ser mãe. Desde pequena, falava para quem quisesse ouvir que sua maior vocação era a maternidade. Quando conheceu o marido, Gabriel Alencar Longarai, 34, ela soube que tinha encontrado a pessoa certa para começar uma família.
“Como meu marido é um homem trans, as opções eram adotar ou fazer fertilização in vitro (FIV). Eu estava quase perdendo as esperanças quando encontrei um grupo no Facebook de inseminação caseira”, conta. Os custos da FIV no Brasil chegam à faixa dos R$ 30 mil, motivo pelo qual casais e tentantes buscam outras opções.
A inseminação caseira, que tem as mesmas chances de gerar uma gravidez que uma relação sexual no período fértil, é simples: a tentante coloca o esperma em uma seringa ou aplicador e deposita o conteúdo no fundo do canal vaginal, na esperança de que os óvulos sejam fecundados.
A ginecologista e especialista em reprodução humana, Karina Tafner, explica que a prática pode beneficiar casais em que uma das partes não consegue realizar a fecundação de forma natural: “São mulheres que têm muita dor e não conseguem ter relação sexual em número suficiente no período ovulatório, ou maridos que não conseguem manter uma ereção e ejacular no fundo da vagina”.
Os riscos aparecem quando uma pessoa desconhecida é adicionada a essa equação, como o doador do sêmen. A maior preocupação dos médicos é a disseminação de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). “Mesmo que a pessoa traga os exames, você não sabe se está na quarentena ou se existe alguma janela imunológica [período entre a infecção e a produção de anticorpos]”, afirma Fernando Prado, especialista em reprodução assistida e diretor clínico da Neo Vita.
Há também preocupação com a manifestação de doenças genéticas hereditárias. “São várias questões de saúde, para a mãe e para o bebê, que passam despercebidas e são bastante perigosas”, resume o especialista.
Ao decidir pelo método, Nicole começou a conversar com integrantes do grupo. “Tem muita gente do bem, mas ouvi casos de doadores que colocavam detergente na seringa para ‘destruir o esperma’”, revela. “Depois de várias tentativas, ele sugeria fazer o método natural [com relação sexual]. Como muitos casais têm o sonho de ter um bebê, eles topavam”.
Para minimizar os riscos, ela passou meses procurando recomendações de doador em Porto Alegre. Jefferson (nome fictício) morava em uma cidade próxima e as duas partes chegaram a um acordo. “Ele não cobrou nada, apenas o valor da gasolina e dos exames, de ISTs e espermograma”.
O encontro foi em um hotel. “Fiquei no quarto esperando e ele no banheiro. Quando ele terminou, colocou na seringa e meu marido injetou em mim. Fiquei grávida na segunda tentativa da minha filha, Alice”, conta. Os dois ainda têm contato com Jefferson. “Queremos aumentar a família e ele é de confiança. Acredito que ele tenha em torno de uns 60 positivos [doações de sêmen que resultaram em gravidez]”, afirma.
A ausência da anonimização dos doadores é outro aspecto que preocupa especialistas. A situação jurídica de quem opta pela inseminação caseira é diferente de quem faz FIV, em que há medidas para impedir que a doação de gametas ou a gestação, em casos de barriga solidária, implique em reconhecimento de parentalidade.
Na inseminação caseira não há a declaração, por parte de uma clínica, de que a criança foi gerada por reprodução assistida, o que pode dificultar o registro. “A regra dada para os cartórios é exigir essa declaração”, explica Henderson Fürst de Oliveira, presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP.
“Na prática, muitos casais precisam recorrer ao Judiciário para garantir o registro, ou o fazem omitindo a inseminação”, complementa o advogado Gabriel Barreira Bressan. Os advogados recomendam, para maior segurança da família, registrar uma declaração do doador formalizando que não há interesse na paternidade.
Para mulheres em relacionamentos homoafetivos, também pode ser mais difícil ter a dupla maternidade reconhecida. “Até recentemente, era necessário que as mães entrassem com uma ação requerendo o reconhecimento da parentalidade socioafetiva”, afirma Henderson.
Hoje, um precedente do STJ (Superior Tribunal de Justiça) permite que se conceda a parentalidade quando a gestação ocorre no curso de uma união estável. “Essas decisões refletem uma tendência progressista, mas são, em grande parte, construídas caso a caso e dependem da interpretação do juiz”, pontua Gabriel.
Luana Gutierrez, 26, e Daniela Gutierrez, 31, vivem no interior de São Paulo. Foi no grupo do Facebook que conheceram Alex (nome fictício), de 52 anos, um doador famoso nas comunidades virtuais, e que afirma ter mais de 300 “positivos”.
Alto, loiro e de olhos claros, Alex conheceu o grupo em 2017 e conta já ter viajado para diferentes lugares do país para fazer suas doações. “Muitos acham que sou louco, mas é gratificante ajudar mulheres que tentaram a FIV por anos. Posso dizer que sou mais eficiente que a fertilização in vitro”, brinca.
Ele foi o doador de Luana e Daniela para as gestações dos dois filhos Maitê, de dois anos, e Matteo, de quatro meses. “Ele deu a seringa e nos desejou boa sorte antes de ir embora. Foi muito profissional”, comenta Luana.
As mães das mais de 300 crianças que teriam sido geradas com o sêmen de Alex mantêm um grupo para evitar que os filhos possam se relacionar no futuro. “Muitas pessoas podem achar que isso não é normal ou fazer memes com a situação. Mas nossos filhos são nossa vida, não faríamos nada diferente”, finaliza Luana.
Apesar de ter se disseminado nas redes sociais, a inseminação caseira não é regulamentada. Segundo o Ministério da Saúde, a ausência de protocolos clínicos e diretrizes para esse método impossibilita sua padronização, o monitoramento sistemático pela rede pública de saúde e o reconhecimento da técnica pelos conselhos profissionais.
Em nota, a pasta reforça a importância do acompanhamento especializado em reprodução humana assistida, assegurando segurança e equidade no cuidado à saúde reprodutiva. As práticas em saúde devem estar em conformidade com as normas e regulamentações da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), visando a segurança do paciente.
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