No final do ano de 1824, o governo da Província de São Paulo andava às voltas com um grande problema para resolver: uma onda de envenenamento entre os escravizados da Vila de Itu, que funcionava como uma possível forma de resistência e ameaçava o patrimônio dos seus senhores, já que cativo era sinônimo de dinheiro e cada perda representava grande prejuízo naquele sistema econômico.
A preocupação era tanta que o Conselho da Presidência da Província, que atuava mais ou menos como a Assembleia Legislativa de hoje, fez uma proposição em ata lavrada no dia 20 de dezembro de 1824. Nela, o conselheiro tenente-coronel Rafael Tobias de Aguiar inicia relatando que eram “repetidas as propinações de veneno de uns para outros escravos na Comarca de Itu”.
Depois determina que os ouvidores vigiem a situação em suas comarcas e que “escravo algum que morrer subitamente e houver indício de ter sido envenenado seja enterrado sem se proceder ao necessário exame por Facultativos e corpo de delito direto, afim de melhor constar da propinação de veneno”. Esse documento se encontra no Arquivo Público do Estado de São Paulo e foi publicado em 1961 no livro “Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo”.
A determinação do conselheiro se refere a um contexto em que muitos senhores desses escravizados, temendo ainda mais perdas materiais, não levavam os cativos culpados por envenenamentos de seus colegas à Justiça e tratavam de vendê-los rapidamente para poupar mais prejuízos.
Segundo Tobias de Aguiar, esses senhores, “tendo mais em vista seu interesse particular, do que o bem geral, subtraem aqueles que perpetram tão grave delito ao devido castigo, já escondendo-os e já passando-os a diversos compradores, residentes em diferentes Freguesias e Termos”.
A Vila de Itu, naquela segunda década do século 19, era uma das mais prósperas de São Paulo, responsável por cerca de um quarto de toda a produção açucareira da província. O conjunto arquitetônico do eixo histórico da cidade —com igrejas, conventos, praças e sobrados— atesta a pujança econômica que o lugar viveu no passado. Fazendas históricas de açúcar ainda preservadas, como a Pirahy e a Capoava —com suas sedes construídas em taipa de pilão e seus engenhos movidos a água—, são testemunhas de um tempo em que a economia se baseava no braço do escravizado.
Como observou a historiadora Eni de Mesquita Samara no livro “Lavoura Canavieira, Trabalho Livre e Cotidiano”, o número de escravizados em Itu (5.014) superava o de pessoas livres (3.768). Isso gerava enorme insegurança entre os brancos, que temiam uma grande rebelião escrava como a que encerrou o controle colonial da França no Haiti, abolindo a escravidão e estabelecendo o primeiro estado negro independente das Américas, entre o final do século 18 e início do 19.
O medo era tanto que as autoridades exerciam os mais perversos modos de repressão contra os cativos. Qualquer manifestação, como batuques e festejos, era proibida. Havia toque de recolher durante as noites. Um corpo de polícia, formado por dez homens armados, rodava pela Vila para coibir ajuntamento de cativos. Os que infringissem as regras eram cruelmente castigados.
Como registrou o historiador Clovis Moura no livro “Rebeliões da Senzala”, referindo-se ao caso de Itu, “sem perspectiva do progresso social, os elementos dessa classe (escravizados) protestam como podem, algumas vezes de forma dramática”.
O envenenamento era prática conhecida entre os cativos, tinha a ver com os saberes que esses homens e mulheres trouxeram do continente africano e também aprenderam com os povos originários, como ponderou outra historiadora, Inaê Lopes dos Santos, professora de história da América da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O que na visão de Moura se caracterizava como “protesto”, para outros autores pode ser classificado como simples desespero. É o que explicou o professor da PUC-SP Márcio Farias, especialista em estudos sobre relações raciais. “Há autores que entendem essas ações como atos de desespero frente ao que estavam vivenciando”, disse. “Para eles, resistência e protestos seriam apenas as formas políticas, como fugas, revoltas e quilombos.”
Inaê Lopes dos Santos levantou ainda mais uma hipótese possível para a onda de envenenamento entre escravizados, verificada em Itu. “Ali o ocorrido pode se tratar de uma questão interna de uma propriedade específica em que havia algum tipo de disputa entre a população escravizada”, disse.
A historiadora lembrou que uma das principais táticas utilizadas pelos proprietários era a compra de pessoas que vinham de regiões distintas do continente africano, justamente para que fosse muito difícil a criação de uma identidade entre eles.
“Então a gente pode estar diante de uma situação dessas”, afirmou. “Esse documento [ata do Conselho da Província] cria possibilidades de formulação de hipóteses, mas não responde à pergunta se foram mesmo atos de resistência”.
De acordo com Selma Regina Dias, diretora cultural da União Negra Ituana (Unei), essas histórias não devem e não podem ser esquecidas e é a isso que se propõe a entidade da qual é uma das dirigentes. “Resgatar a história e a cultura afro em Itu contribui para combater o racismo nos dias de hoje e promover a igualdade racial”, afirmou. “É nisso que estamos empenhados.”