A troca de poder na Síria, um importante ator geopolítico no Oriente Médio, lança ondas de incerteza na região. Com a deposição do ditador Bashar al-Assad após uma ofensiva fulminante de vários grupos rebeldes, dos quais o principal é a Organização pela Libertação do Levante (HTS, na sigla em árabe), ainda não se sabe quem de fato ocupará o poder no país, seja de forma transitória, seja de forma permanente; em um vídeo divulgado neste domingo, o primeiro-ministro Mohamed Ghazi al-Jalali afirmou que está disposto a trabalhar com os insurgentes na estabilização do país. Mesmo assim, com base em todas as alianças construídas pela Síria ao longo do regime de Assad, é possível avaliar quem são os principais beneficiados e prejudicados com o fim de sua ditadura.
Incerto: Os próprios sírios
Os sírios foram às ruas comemorar o fim da ditadura de Assad, um regime caracterizado por violações de direitos humanos, repressão às liberdades, massacres e até uso de armas químicas contra a própria população. No entanto, os possíveis cenários para uma Síria pós-Assad são os mais diversos possíveis: no mais benigno deles, as forças vencedoras da guerra civil entram em um acordo e permitem que a população decida o destino do país; no pior deles, a guerra civil continua, com vários grupos tentando ocupar o lugar do ditador deposto.
Quem tem mais a temer no momento são os alauítas, membros de uma vertente do islamismo que correspondem a apenas 12% da população, mas à qual Assad pertencia e que ocupava boa parte dos cargos no governo, e que podem rapidamente se tornar o alvo de um ajuste de contas. Os curdos, que durante a guerra civil chegaram a conquistar certa autonomia, também terão motivos para se preocupar caso o novo governo sírio seja fortemente influenciado pela Turquia de Recep Tayyip Erdoğan, que ajudou os rebeldes e que reprime fortemente os curdos dentro de seu país. Outras minorias como os cristãos e os drusos esperam para ver se a HTS manterá a tolerância demonstrada em Idlib, região que já estava em seu poder há mais tempo, ou se mostrará as garras caso assuma definitivamente o poder na Síria – o grupo é considerado uma organização terrorista pelos Estados Unidos e pela ONU.
Perdedora: Rússia
Vladimir Putin, o mais poderoso dos aliados do ditador deposto, salvou a pele de Assad em 2015, mas já não vinha ajudando o colega sírio por estar mais empenhado em sua própria guerra, iniciada em 2022 com a invasão da Ucrânia. A participação recente da Rússia limitou-se a alguns poucos ataques aéreos no norte do país para tentar conter a ofensiva rebelde; na sexta-feira, dia 6, a embaixada russa havia enviado um alerta aos seus cidadãos para que deixassem a Síria o quanto antes. Putin tem um interesse vital na Síria: a única base naval russa fora do território da antiga União Soviética está localizada em Tartus, na costa do Mar Mediterrâneo, dispensando a necessidade de navios russos cruzarem o Mar Negro e os estreitos de Bósforo e Dardanelos, controlados pela Turquia (que integra a Otan). O futuro das relações entre Síria e Rússia ainda é incerto: pouco antes da queda de Assad, o chanceler Sergei Lavrov se referiu aos rebeldes como “terroristas” cuja vitória seria “inadmissível”; agora, tentará convencer o novo governo de que já não estava tão empenhado assim em proteger o antigo ditador, mas abrigá-lo em solo russo não deve fazer Putin ganhar pontos com o futuro governo sírio.
Perdedor: Irã
Milícias xiitas iranianas se juntaram aos russos em 2015 para impedir uma vitória rebelde, e os dois países estreitaram ainda mais seus laços desde então, a ponto de serem os dois únicos estados a fazer parte do chamado Eixo da Resistência, em oposição a Israel e ao Ocidente – os outros membros são o Hezbollah, o Hamas e os houthis do Iêmen. Mesmo assim, nos momentos finais da ofensiva rebelde o Irã também não se empenhou em salvar Assad, preferindo retirar seu pessoal de Damasco. Com o Hamas e o Hezbollah já bastante enfraquecidos pelas ações israelenses, a queda de Assad reduz ainda mais a influência iraniana no Oriente Médio. Segundo Danny Citrinowicz, membro de um grupo de trabalho sobre o Irã no Atlantic Council, o fim do regime de Assad forçará o Irã a rever sua estratégia de enfrentamento com Israel e o Ocidente, o que pode levar inclusive a uma aceleração em seu programa nuclear, seja para efetivamente conseguir uma bomba, seja como meio de levar as potências ocidentais à mesa de negociação.
Perdedor: Hezbollah
O grupo terrorista que atormenta Israel pelo norte já havia perdido inúmeros de seus líderes em ataques cirúrgicos israelenses na recente contraofensiva do Estado judeu. Ao longo da guerra civil síria, o Hezbollah enviou combatentes para lutar ao lado do exército sírio. Mas, sem Assad, o grupo perde um importante intermediário na obtenção de apoio iraniano e deve ficara ainda mais vulnerável aos ataques israelenses.
Vencedor: Israel
O premiê israelense, Benjamin Netanyahu, comemorou a queda de Assad e reivindicou parte da responsabilidade por ter enfraquecido os aliados do ex-ditador sírio, permitindo assim que os rebeldes finalmente tivessem o sucesso que lhes escapou em oportunidades anteriores. No entanto, por mais evidente que seja o ganho israelense com a queda de um aliado do Irã e do Hezbollah, dois dos maiores inimigos de Israel, a incerteza sobre o que será feito da Síria sem Assad não permite conclusões mais definitivas. Um possível “efeito colateral” da queda de Assad e do enfraquecimento do Hezbollah, segundo o site Politico, é a “normalização” da situação no Líbano, que certamente é de interesse israelense.
Vencedora: Turquia
Enquanto Israel quer crédito por enfraquecer aliados de Assad, o autocrata turco, Recep Tayyip Erdoğan, vem apoiando os rebeldes desde os primeiros momentos da guerra civil, como parte de um conflito geopolítico mais amplo, em que a Turquia disputa influência com o Irã. Por esse ângulo, qualquer mudança que diminua o poder internacional do regime dos aiatolás beneficia Erdoğan. Um novo governo que seja mais hostil aos curdos sírios também enfraquecerá os curdos na Turquia, o que também interessa a Erdoğan.
Possíveis vencedores: Estados Unidos
Por mais que a queda de um aliado do Irã seja automaticamente benéfica aos Estados Unidos, o país terá de agir rapidamente se não quiser que o novo governo sírio acabe em outra esfera de influência que também seja hostil aos EUA, afirma Joze Pelayo, diretor associado da Iniciativa para Segurança do Oriente Médio do Atlantic Council. Para Pelayo, os Estados Unidos precisam aproveitar a rejeição ao Irã e à Rússia, apoiadores de Assad, para se colocar à disposição do governo de transição na organização de eleições limpas, e se esforçar para fazer da Síria um elemento de estabilidade no Oriente Médio, o que será benéfico a Israel. No entanto, logo após a queda de Assad, o presidente eleito Donald Trump escreveu em seus perfis de mídias sociais que os EUA não deveriam se envolver no caos sírio. “Essa guerra não é nossa”, afirmou, lançando dúvidas sobre a capacidade norte-americana de aproveitar a oportunidade.