Na alta Idade Média apareceu um documento forjado que mudou o mundo. Seu objetivo era insidioso: falsificar o passado. Com o título em latim de “Constitutum Constantini”, o documento dava a entender ter sido escrito pelo próprio imperador Constantino no século 4. Só que na verdade a fake news foi forjada séculos depois, perto do ano 800.
O documento alegava que Constantino havia transferido para o papa todo o poder sobre o império. De quebra, transferia também vastos territórios europeus e os símbolos da autoridade imperial, que poderiam ser usados pelo papa para mostrar que todos os governantes se subordinavam a ele.
Essa malandragem (que em português é chamada de “Doação de Constantino”) teve um papel histórico importante. Impactou inclusive o Brasil. Quando Portugal e Espanha disputaram a repartição das terras nas Américas, coube justamente ao papa resolver a questão. Foi ele que editou a bula Inter Caetera, com base na autoridade supostamente dada a ele por Constantino (a bula foi atualizada no Tratado de Tordesilhas). Em suma, o Papa era o Supremo Tribunal Federal da época.
Corte para 2024. As fake news estão em toda a parte. São produzidas industrialmente. No campo da música, graças à inteligência artificial, começa a ocorrer um fenômeno curioso de falsificação do passado. Pegue por exemplo o grupo Habibi Habbas, formado na Líbia em 1970. No YouTube há o álbum Funky Caravan, lançado por eles em 1976. Só que esse grupo não existe. Ele foi forjado usando inteligência artificial, sua música foi toda feita por IA. Tudo é sintético e inventado (há até um segundo álbum, chamado Disco Kebab, de 1977).
O mesmo se aplica a Yuna Okira, artista japonesa que em 1980 lançou um álbum de música instrumental chamado Shizuka na Shunka (“Momentos Tranquilos”). Ou ainda, ao cantor e guitarrista iraniano Ghalibi Ghaboussi, que atingiu o auge em 1973 com o disco Royaye Gomshode (aliás, o meu favorito). Eles não existem. Mas na internet há álbuns inteiros de cada um, com biografias, capas e muito mais. São artistas “fake”. Criados em 2024 para parecer terem existido no passado. Não duvido de que no futuro fique difícil distinguir entre o passado “real” e o passado forjado pela inteligência artificial.
Por falar em fake news, o Supremo Tribunal Federal está julgando a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Um dos objetivos do STF é justamente combater “fake news”. Em voto proferido pelo ministro Dias Toffoli ele cita inúmeras leis, do Brasil e de outros países, que regulam a internet e inspiram o Supremo a “regular” também. Dentre elas o DSA, lei aprovada na Europa, o NetzDG, em vigor na Alemanha, e a Section 230, nos EUA. O que o ministro esqueceu de citar é que todas elas foram aprovadas pelo Poder Legislativo, isto é, pelos parlamentos. Nenhuma dessas leis foi inventada pelo Poder Judiciário. Talvez o ministro já esteja no futuro. Um em que as fronteiras entre o Parlamento e o Judiciário não existam mais. Tal como a música de Ghalibi Ghaboussi.
Já era – Discos de vinil, fitas cassete e iPods
Já é – Nostalgia dos discos e fitas cassete
Já vem – Nostalgia dos iPods (agora fabricados na China por marcas como HiBy e Fiio)
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