Projetos legislativos caros à tropa conservadora miram o aborto e podem acertar na FIV (fertilização in vitro).
A técnica de reprodução assistida, afinal, envolve o descarte de embriões humanos que não serão implantados no útero materno. A PEC (proposta de emenda à Constituição) 164/2012, aprovada na semana passada pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara, propõe incluir na Constituição que “a inviolabilidade do direito à vida” deve acontecer “desde a concepção”.
Portanto, ao menos na teoria, não seria só o aborto como um todo —inclusive as hipóteses hoje aceitas pela lei, como risco de morte da mãe, casos de estupro e anencefalia do feto— que estaria a perigo. Também a FIV enfrentaria insegurança jurídica caso o Congresso avalize a PEC.
Esse cenário foi aventado por duas parlamentares contrárias à proposta, Sâmia Bonfim (PSOL-SP) e Erika Kokay (PT-DF), na sessão da CCJ que terminou com 35 votos a favor do texto e 15 contra.
Bonfim diz à Folha que “a cruzada é contra o aborto, contra as mulheres que não querem ser mães”, mas um efeito colateral poderia atingir “também as que querem ser mães, pois proíbe a fertilização in vitro, que dá a possibilidade a milhares de mulheres de realizar o sonho da maternidade”.
“Então”, continua a psolista, “não se trata definitivamente de defender a vida, mas de ter total controle sobre os corpos das mulheres”.
Kokay afirma que a FIV, em princípio, também pode ser criminalizada. “O congelamento do embrião, que é a junção do óvulo e do espermatozoide, é um processo de concepção. A reprodução assistida pressupõe que vários embriões devem ser descartados para que as mulheres tenham o direito de serem mães e para que os casais possam, enfim, construir a vida de crianças.”
A deputada Dani Cunha (União-RJ) definiu essa conjectura como “argumentação falaciosa”. “Isso não tem nada a ver, pois a concepção se dá quando a formação do feto é iniciada em condições de desenvolvimento dentro do ventre da mãe”, disse na CCJ. “Um embrião congelado não é um feto em formação.”
O propósito da PEC é repelir “a ideia de que o feto é parte do corpo da mulher e pode ser descartado arbitrariamente, como unhas ou cabelo cortados”, segundo ela. “É disso que estamos a tratar.”
Dani é filha do autor do texto. Ele foi proposto em 2012 pelo então deputado Eduardo Cunha, parte da bancada evangélica e que ainda assumiria a presidência da Câmara, para depois ser cassado e preso.
Kokay lembrou na Câmara que, após vários estados dos EUA fecharem o cerco contra o aborto, “também começou a se questionar a fertilização in vitro, porque, se a vida existe desde a concepção, e a vida é inviolável, não pode um embrião ser descartado com a autorização, como é hoje, dos próprios pais”.
Em junho, a Convenção Batista do Sul, uma das maiores igrejas americanas, votou uma resolução condenando a FIV. Não haveria por quê, na visão da igreja, ignorar que embriões devem ser protegidos a qualquer custo, como vida que são.
No começo do ano, a Suprema Corte do Alabama decidiu que embriões congelados são uma pessoa como outra qualquer, e quem os descartasse poderia ser responsabilizado judicialmente. Temerosas, as clínicas de fertilização anunciaram uma debandada do estado, o que levou a governadora, uma republicana, a sancionar uma lei dando imunidade civil e criminal ao serviço.
Donald Trump, durante a campanha presidencial que o consagraria vencedor em novembro, deu uma declaração que soou como resposta à ideia de que os republicanos são contra um recurso usado por muitos casais inférteis que desejam ter filho. “Nós realmente somos o partido da fertilização in vitro”, disse em debate promovido pela Fox News, com um público só de mulheres.
A interpretação judicial no Alabama e o reposicionamento da Convenção Batista do Sul, contudo, ligaram o alerta para o risco de futuros reveses no campo da fertilidade.
Seriam possíveis efeitos colaterais da derrubada do Roe vs. Wade. Trata-se do caso que fez a Suprema Corte americana conceder, em 1973, garantia constitucional ao aborto. Em 2022, o colegiado reverteu esse entendimento.
O movimento feminista brasileiro ecoa as preocupações a respeito da FIV. “Se essa mudança da Constituição entrar em vigor, as pessoas que não têm possibilidade de ter filhos sem o auxílio de tecnologias de fertilidade vão ficar desassistidas”, afirma Joluzia Batista, articuladora política da ONG Cfemea.
A PEC na berlinda não chega a ocupar duas laudas, sem esmiuçar o que seria vetado se fosse promulgada —o que é visto como brecha para questionar o aborto legal, a fertilização in vitro e também pesquisas com célula-tronco.
Há um projeto de lei mais explícito sobre o tema. O Estatuto do Nascituro foi apresentado em 2021 pela deputada católica Chris Tonietto (PL-RJ) —há uma versão de 2007 que tem como coautor o espírita Luiz Bassuma, então no PT, hoje no Avante.
O projeto de Tonietto, que é também relatora da PEC atual, define o nascituro como “indivíduo humano concebido, mas ainda não nascido”, que compreende os “indivíduos da espécie humana concebidos in vitro ou produzidos mediante clonagem ou por qualquer outro meio”.
Líderes evangélicos com quem o jornal conversou foram reticentes sobre o assunto. Aproveitaram para reafirmar sua aversão ao aborto, sem responder diretamente se estendiam o veto à FIV.
O deputado Marco Feliciano (PL-SP) disse que só poderia dar seu parecer “se a PEC for aprovada”, com a formação de “fórum adequado para ouvirmos os especialistas”. Questionado se pessoalmente endossava o método reprodutivo, respondeu apenas que “qualquer processo que preserve a vida tem meu apoio, e qualquer outro no sentido contrário, não”.
A Igreja Católica tem posição mais inequívoca sobre a FIV: é contra. Em 1987, o Vaticano a condenou listando como motivos a destruição dos embriões não implantados e a possibilidade de fertilização por um doador que não seja o marido, ou seja, fora do contexto conjugal.
A antropóloga Naara Luna, professora da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autora de um estudo sobre novas tecnologias reprodutivas, aponta que a cúpula católica não rejeita a FIV apenas porque há embriões que acabam sendo jogados fora —ou tolerariam a inseminação artificial, que não manipula embriões. Para a Santa Sé, qualquer tipo de reprodução assistida afeta “a dignidade da procriação”, que precisaria envolver sexo entre marido e mulher.
Não há posição formal de grandes igrejas evangélicas nesse tópico, segundo Luna. O que há é uma adesão a projetos como esta PEC de agora ou o Estatuto do Nascituro, que “considera aquele embrião congelado com a dignidade máxima, como se fosse uma pessoa plena, nascida”. Essa onda cresce.
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