Ele foi um dos cientistas mais famosos do Brasil e um dos poucos a ser indicado para receber o Prêmio Nobel. Mas o “lado B” de Cesar Lattes (1924-2005), em intensas batalhas pela ciência e pela própria saúde, talvez seja menos conhecido do público —até agora.
Para sanar essa lacuna e prestar homenagem ao físico no ano de centenário do seu nascimento, os jornalistas Marta Góes e Tato Coutinho assinam “Cesar Lattes: Uma Vida – Visões do Infinito”, lançado neste mês pela editora Record.
Com organização do jornalista Jorge Luis Colombo e de Maria Cristina Lattes Vezzan, a segunda das quatro filhas do biografado, o livro traz em suas 320 páginas um panorama completo, da infância do cientista em Curitiba, filho de imigrantes italianos, aos estudos em São Paulo, até a catapulta para a fama que foi sua temporada em Bristol, no Reino Unido, onde se consagrou com a descoberta de uma nova partícula subatômica, o méson pi, hoje mais conhecido como píon.
O livro não se propõe a ser uma obra de divulgação científica propriamente dita. Embora o texto não fuja das circunstâncias e dos resultados produzidos por Lattes, também não está concentrado nisso, muito menos em apresentar ao leitor uma compreensão de onde no edifício da física moderna suas contribuições hoje se encaixam.
Se você quer entender o que é um méson pi, além do que de início se sabia sobre ele, uma partícula subatômica com massa intermediária entre o elétron e o próton, não será aqui que a dúvida será sanada.
Em compensação, o livro tem todo o frenesi cultural e científico em torno da então emergente física de partículas de altas energias, explorando raios cósmicos e aceleradores —e em ambos os casos com participação pioneira de Lattes, em Bristol, com observações feitas nos Andes bolivianos e em Berkeley, nos Estados Unidos.
Retratando a personalidade e o amor à curiosidade científica de Lattes, Góes e Coutinho contam como ele reagiu ao fato de ver o chefe de seu laboratório, Cecil Powell, conquistar o Nobel em Física por uma descoberta em que ele próprio havia sido preponderante.
O méson pi seria revelado ao mundo em 1947, confirmando uma predição teórica de Hideki Yukawa feita em 1935. Yukawa ganharia o Nobel em 1949, o primeiro para o Japão. Powell ganharia o de 1950, quando Lattes foi preterido. O Brasil até hoje segue à espera de seu primeiro ganhador.
Mesmo não tendo sido agraciado, então com 23 anos, Lattes adquiriu fama instantânea por sua descoberta extraordinária e não hesitou em emprestar seu prestígio para tentar desenvolver a ciência brasileira —uma grande parcela de sua vida, e dessa biografia, apresenta detalhes desse esforço.
Lattes foi um dos idealizadores e principais fiadores da instituição de sucesso que se tornaria o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), com o qual esperava inserir o Brasil de forma consistente na revolução em curso na física experimental.
Aos 21 anos, recém-chegado a Bristol, ele já tinha essa visão para o futuro. Escreveu na ocasião ao colega José Leite Lopes: “É muito mais interessante e difícil conseguir formar uma boa escola num ambiente precário do que ganhar o Prêmio Nobel trabalhando no melhor laboratório de física do mundo”.
Ainda que não tenha sido oficialmente reconhecido, ele na prática fez as duas coisas. Determinado a fazer do Brasil um novo polo para a física, o então jovem e idealista Lattes descobriu como, por aqui, na prática a teoria é outra.
Frustrou-se muito com os entraves burocráticos e a falta de visão para o investimento na ciência, seja pela captação com financiadores privados, seja com o poder público. Seu desalento chegaria a um ponto máximo numa crise de corrupção que surgiria no coração do CBPF em meados dos anos 1950, quando ele próprio denunciou à imprensa os desvios e a baixa disposição da burocracia estatal em investigar e punir os desmandos.
A essa e outras crises, retratadas com riqueza de detalhes no livro, junta-se um desafio que Lattes teve de enfrentar durante a maior parte da sua vida —sofria de distúrbio bipolar e passou décadas entre episódios de mania e depressão.
A obra retrata o esforço constante de Lattes para se manter ativo, útil, participativo e fiel a seus objetivos, mesmo diante das dificuldades e dos tratamentos então muito limitados, com uma doença muito estigmatizada. Chegou a ser internado diversas vezes.
O Cesar Lattes que aparece no livro é a de um herói trágico e humanizado, que produziu incríveis realizações sempre temperadas com grande modéstia, lutando contra forças internas e externas e ocasionalmente perdendo essas batalhas.
É difícil passar por sua trajetória sem pensar em como os desafios de exercer a excelência no Brasil não foram minando sua capacidade de seguir adiante. Também há de incomodar como certas histórias e padrões se repetem, com a perseguição a intelectuais na academia durante os anos de chumbo do regime militar, e a atitude que certas correntes político-ideológicas hoje mantêm em relação à ciência.
No fim das contas, Góes e Coutinho aproveitam a vida de Lattes para oferecer um panorama valioso de como a própria física emergiu no Brasil e hoje tem a produção respeitável que tem, a despeito de todos os entraves.
A história começa com seus grandes precursores, como Gleb Wataghin, passa por seus maiores expoentes, como Lattes, Mario Schenberg e José Leite Lopes, e termina com a consolidação de um sistema acadêmico funcional no B rasil, em parte auxiliado pela plataforma de currículos mantida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, batizada apropriadamente em homenagem a Lattes em 1999.