Representantes da cúpula do Exército e da Aeronáutica estão tentando reverter o estrago político causado por um vídeo lançado pela Marinha na semana passada e que vem atrapalhando as negociações com o governo sobre corte de gastos nas Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). Os militares foram incluídos no pacote fiscal anunciado no fim de novembro pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Eles tentam agora convencer o governo que um vídeo divulgado pela Marinha criticando os cortes foi uma ação isolada.
O orçamento das Forças Armadas não foi cortado, mas os militares terão que aumentar os anos trabalhados antes de entrar na inatividade. Os integrantes das Forças Armadas não recebem aposentadoria, ganham seu soldo integral ao passarem para a reserva (período em que podem ser convocados em tempos de guerra) e depois ao ir para a reforma (quando não estão mais aptos para lutar).
Essas mudanças nas regras sobre as carreiras dos militares foram propostas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e discutidas junto ao ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. Antes do anúncio do pacote, o chefe da pasta afirmou que as Forças Armadas iriam fazer um “sacríficio” para ajudar a solucionar as contas do país.
“Vamos contribuir exatamente como o ministro Haddad pediu que contribuíssemos. Significa que estamos dando um exemplo, um sacrifício para resolver o problema do país, que interessa a todos”, declarou o ministro.
A ideia do governo é que os militares só possam passar à inatividade após completar 35 anos de serviço ativo e 55 anos de idade. A reportagem apurou que os militares da cúpula do Exército e da Aeronáutica entenderam que a proposta não é extrema e pode ser assimilada pelas forças principalmente em um contexto em que exércitos do mundo inteiro vêm encontrando problemas de recrutamento.
“Nós fizemos um acordo com as Forças Armadas, a quem agradeço. Fizeram um gesto de última hora, a pedido do ministro Múcio e do presidente Lula, para que também desse uma cota de contribuição importante”, disse Haddad sobre o acordo antes da divulgação do vídeo da Marinha.
Governo segurou envio da proposta ao Congresso após vídeo da Marinha
Para que sejam implementadas as mudanças nas carreiras das Forças Armadas, os militares precisarão permanecer mais tempo em determinados postos e patentes. Essa medida tem como objetivo garantir um equilíbrio no futuro entre o número de comandantes e comandados, evitando assim uma possível desproporção que poderia prejudicar a hierarquia e o funcionamento interno das forças. Para que essa adaptação se concretize de forma mais justa, os representantes das Forças Armadas decidiram recorrer ao presidente Lula para solicitar a criação de uma regra de transição que amenizasse o impacto dessas novas exigências em relação ao tempo de serviço.
A proposta em questão estabelece que os militares que já estão desempenhando suas funções nas Forças Armadas há mais de 35 anos precisem cumprir um “pedágio” adicional de 9% em relação ao tempo de serviço restante para a aposentadoria. Essa regra permitiria que eles se aposentassem mesmo sem terem completado 55 anos de idade, oferecendo alguma flexibilidade aos mais antigos no serviço. A ideia é usar a transição como forma de garantir que as mudanças ocorram de maneira paulatina e menos abrupta, evitando discordâncias internas ou prejuízos excessivos aos afetados. O período de transição está planejado para ser finalizado até o ano de 2032, o que proporcionaria um intervalo considerável para as adaptações necessárias. Esse plano foi definido durante uma reunião organizada no Palácio da Alvorada, que ocorreu no sábado, dia 30 de novembro.
Estiveram presentes na reunião, além do presidente Lula e do ministro da Defesa, Múcio Monteiro, os principais comandantes das três Forças Armadas: o general Tomás Paiva, representando o Exército; o almirante Marcos Olsen, da Marinha; e o brigadeiro Marcelo Damasceno, da Força Aérea Brasileira (FAB). Durante o encontro, as mudanças sugeridas foram debatidas e posteriormente alinhadas entre as partes. A proposta seria enviada ao Congresso Nacional dentro de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), junto de outras medidas que também fazem parte do pacote de cortes elaborado pelo governo para equilibrar as contas. No entanto, um desdobramento inesperado gerou tensão e mudou o cenário.
No dia seguinte ao encontro, no domingo, 1º de dezembro, o Palácio do Planalto decidiu recuar em relação ao acordo. Isso ocorreu logo após a Marinha divulgar, de maneira unilateral, um vídeo que causou grande repercussão e foi amplamente interpretado como uma crítica à percepção de privilégios na carreira militar. O vídeo, produzido como parte da comemoração do Dia do Marinheiro, mostrou imagens de militares em treinamento intensivo e participando de ações humanitárias, como a resposta às enchentes no Rio Grande do Sul. Essas cenas foram intercaladas com imagens de civis realizando atividades de lazer, como surfar, dançar ou participar de festas. Tal contraste levantou questionamentos e incômodos sobre os objetivos reais da peça publicitária.
Uma controvérsia maior surgiu quando algumas pessoas apontaram que um dos fuzileiros retratados no vídeo, rastejando na lama, tinha feições que lembravam o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Ainda que a Marinha tenha divulgado uma nota pública afirmando que o conteúdo não tinha a intenção de criticar o conjunto de medidas discutidas sobre ajuste fiscal, e que a peça buscava apenas enaltecer o trabalho árduo de seus militares, o episódio acabou gerando desconforto no governo. Na nota, a Marinha ressaltou que “o objetivo do vídeo é destacar e reconhecer o sacrifício contínuo de marinheiros e fuzileiros navais, que trabalham com dedicação para a defesa do país e o desenvolvimento nacional, em ações essenciais que ajudam a fornecer à sociedade condições de segurança e prosperidade.”
Apesar da tentativa de explicação, relatos obtidos por meio de fontes ligadas aos militares indicam que o episódio gerou atritos nas negociações. Tanto o presidente Lula quanto integrantes do governo teriam ficado descontentes com o tom do vídeo, o que resultou na interrupção do avanço das conversas sobre a proposta inicial. De acordo com interlocutores, este vídeo tornou-se fonte de tensão significativa entre as Forças Armadas e o governo, configurando o principal fator de desgaste neste momento crítico das renegociações.
Além das mudanças relacionadas ao tempo de serviço, outro ponto sensível no pacote de ajustes proposto é o corte de uma pensão específica chamada “morte ficta”. Atualmente, cônjuges de militares que foram expulsos das Forças Armadas podem receber essa pensão, que foi criada para evitar que familiares sejam prejudicados duplamente caso um militar seja desligado da corporação, especialmente após condenações, como por violência doméstica. Assim, a ideia da pensão é oferecer proteção à família, ainda que menos de 300 casos desse benefício estejam ativos atualmente. Contudo, diante da crise fiscal e da busca por redução de gastos, os militares concordaram em discutir o fim desse benefício, mesmo que ele seja bastante limitado em sua abrangência. Essa questão, somada às alterações sobre o tempo de serviço e aposentadoria, compõe o cenário de ajuste que ainda enfrenta resistências e desafios de aceitação.
Votação da proposta no Congresso pode ficar para 2025
Já os integrantes do Planalto ouvidos pela Gazeta do Povo admitem que o presidente ficou “desconfiado” com a divulgação do material justamente neste momento. Apesar disso, a avaliação é de que a proposta sobre a reestruturação das carreiras será apresentada ainda neste ano ao Legislativo.
A expectativa, no entanto, é de que a medida comece a tramitar apenas em 2025 devido ao calendário para votações. O Congresso entra em recesso no próximo dia 21 e, das três propostas do pacote de gastos que já foram protocoladas, os governistas já admitem que apenas duas devem ser aprovadas ainda neste ano.
“Houve uma reivindicação dos comandantes militares, que está sendo debatida pela equipe da Fazenda no que diz respeito à transição. Mas a posição do governo, em princípio, é pela manutenção da idade mínima e da transição nos termos apresentados na semana passada”, explicou o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP).
Lula está fora de Brasília desde quinta-feira (5), quando embarcou para Montevidéu, no Uruguai, para participar da cúpula do Mercosul. O petista retorna ao Brasil nesta sexta-feira (6) e deve se reunir no final de semana com os ministros da Defesa e da Fazenda para ajustar a proposta sobre os militares.
Uma fonte da alta cúpula das Forças Armadas disse à reportagem que a situação é particularmente desconfortável porque oficiais generais acabam tendo que atuar como se fossem “sindicalistas” (pois os militares não podem se associar a órgãos sindicais). De um lado precisam lidar com os anseios de seus comandados e ao mesmo tempo fazer cortes de gastos e adequações necessárias.
Desafio de Forças Armadas é ter alta capacidade de mobilização de soldados
As guerras da Ucrânia e de Israel colocaram em evidência um problema dos militares em todo o mundo: como possuir grandes exércitos para guerras de alta intensidade, onde o número diário de baixas de soldados (morte, ferimento ou captura) passa de 1.500 combatentes por dia (no caso da invasão russa na Ucrânia).
É praticamente inviável manter exércitos com mais de um milhão de combatentes em tempos de paz, especialmente para nações em desenvolvimento como o Brasil, que tem cerca de pouco mais de 220 mil militares na ativa.
A resposta tem sido investir em capacidade de mobilização. Ou seja, na medida em que o quadro de oficiais de carreira é reduzido, aumenta o número de militares temporários – os soldados do serviço militar obrigatório, os efetivos treinados nos centros de preparação de oficiais da reserva e os militares que passam um número pré-determinado de anos nas Forças Armadas. Esses militares temporários vão para a reserva sem receber soldo ou pensão (ou seja, não há custos “previdenciários” e podem ser mais facilmente mobilizados em caso de guerra. Em um eventual conflito, os militares de carreira assumem a liderança sobre os militares da reserva convocados.
Nas Forças Armadas brasileiras há um apetite para a implementação dessa tendência. O que deixa os militares mais tranquilos para reduzir os quadros de oficiais de carreira é que, diferente de outros países, aqui ainda permanecem válidas as leis de conscrição – recrutamento forçado de soldados. Mas elas não são colocadas em prática pois há mais aspirantes ao serviço militar do que vagas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, em geral a regra é poder se aposentar a partir de 20 anos de serviço com benefício correspondente a 2% por ano de serviço. Mas há pequenas variações. Analistas de políticas públicas debatem no momento se uma regra de aposentadoria precoce para militares brasileiros não poderia ser uma opção viável.